terça-feira, 22 de dezembro de 2009

banda de um homem só na Baía Farta


Cai a cinza das horas nas unhas carcomidas
Por um amarelo que enegrece a aura,
Rodopia no cérebro ensimesmado
A banda da Baía Farta.
Farta de fome, farta de lixo
Farta de tristeza, farta de lágrimas
Que lhe bordeja o pranto das marés

Toca a banda a um só instrumento
O tambor a rebate, o clarinete a óbito
Toca a harpa em choro cadente
O piano marca o ritmo,
No contrapasso da desarmonia
Onde flauta roufenha é rainha.
Na Baía outrora farta
Toca a banda a um só instrumento,
Toca, toca…
Mas não toca a alma de quem se perdeu
Nos ritmos de uma banda de um homem só.

Rimas simples ao dia 26


Tempo de esquecer no mar
O ultimo raio de sol a pôr
Tempo de olhos esbugalhados
Contemplar montras com estupor

Tempo de angustia esquecida
Numa gaveta do passado,
Desaparecida na última curva
Do hipócrita alarvado.

Olhos no pinheirinho
Que é tempo de natal
Tempo de exaltar
E tomar o anti-gripal.

Aquecem-se as gargantas
Os lápis são afiados
Dá-se corda ás cantigas
Os poetas cantam exaltados

Perdigotam às criancinhas
E aos pobres sem abrigo
Lembram-se da sopa dos pobres
E outros que por fastio não digo

Aleivosias aos quatro ventos
Insultos a quem passa fome
Depois do dia vinte e cinco
Ninguém se importa com o que come

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

De mim e de outras mulheres II


O velho furgão Ford Transit ia digerindo a estrada com algum sofrimento, sentia-se as entranhas gemerem a cada metro de caminho que galgava lambendo a berma da velha estrada em cada curva sinuosa. O banco da frente suportava 3 lugares, o do condutor meu tio o meu pai na pendura e eu no meio. O meu tio ia debitando as piadas gastas que já conhecia desde que me conhecia, o meu pai ria-se não sei se da piada se para fazer o jeito ao irmão mais velho. Eu ia calado no meio olhava a estrada sem a ver espartilhado pelos dois adultos pelo fato feito à medida e pelas incertezas do desconhecido para onde o velho furgão me levava. Olhava a estranha fatiota que o meu pai me mandou fazer no alfaiate da aldeia, que já era um homem e devia usar fato e gravata nos acontecimentos importantes como era o caso, dizia-me o meu pai enquanto o velho alfaiate me tirava as medidas. Era justo debaixo dos braços apertando-me os movimentos, as calças eram de boca-de-sino como se usava, uma moda que me fazia levar uns tabefes da minha mãe que eu não gostava de ver as calças a dançarem junto aos sapatos. O colarinho da camisa feito em entretela dura estrangulava-me o pescoço e os sentidos dificultando-me o simples acto de engolir numa rara impressão que me cortava a oxigenação do cérebro criando um vazio que eu queria combater. Mas nada me vinha a não ser o medo do desconhecido e ficava assim como os peixes que arribam à praia e morrem na areia de boca aberta num movimento ridículo, num “abre e fecha” angustiante.
Os travões imobilizaram o furgão num resfolegar de radiador esforçado em frente a um edifício enorme de janelas debruadas a granito todas fechadas. A porta enorme em carvalho que se adivinhava grosso estava também fechada. Tinha um batente de ferro que o meu tio bateu com força, enquanto eu ajudava o meu pai a tirar a mala enorme de chapa da traseira do furgão, onde continha todo o enxoval que os padres mandaram trazer na convocatória que fizeram dando a conhecer aos meus pais que “graças a deus eu tinha sido escolhido para ingressar no seminário menor de braga” o que fez a minha mãe agradecer efusivamente à Sra da Aparecida prometendo logo ali que eu iria a pé ao Santuário da Sra lá no alto da serra. Pousei a mala e olhei as mãos doridas pelo peso e pela marca a vermelho das pegas em alumínio fino, como quem admira uma chaga – maldito fato… Porque tudo tem que ser tão doloroso? – Perguntei-me em silêncio. Um padre de aspecto severo vestido de batina preta franqueou-nos as portas, cumprimentou o meu pai e meu tio e deu-me instruções logo de imediato em jeito de interrogatório – Trouxeste livros? Se trouxeste entrega ao teu pai que não é permitido ler a não ser a bíblia e outros livros de carácter religioso que nós fornecemos. Não és chorão pois não? Espero que não que nós não gostamos de meninos que choram de noite com saudades da mama. – E ia debitando essas instruções enquanto caminhava num andar de ganso desconjuntado pelo longo corredor de ripas de carvalho no chão, com tectos altos debruados a gesso caiado. As molduras na parede branca eram em madeira trabalhada e finamente rendilhada e continham invariavelmente imagens de pessoas com bafos de santidade. O bafo do padre continuava-me a chegar aos ouvidos em forma de conselhos e ameaças veladas cujo cumprimento me dariam a nota de comportamento no final do período.
O meu pai tinha ficado lá atrás com o meu tio de quem me separei e despedi com um “passou bem” à homem como dizia o meu pai. E apetecia-me tanto um abraço…! O colarinho de entretela agoniava-me, tirava-me o ar, só me chegava o cheiro bafiento do velho edifício perdigotar verrinoso do padre. Uma lágrima teimosa espreitava-me no canto do olho, abafei-a com as costas da mão… Maldito fato, porque tudo tem que doer tanto?

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

De mim e de outras mulheres


A Mariazinha era assim a modos que uma Avó na idade que se sabia e aparentava fisicamente. Mas era uma gaiata na forma como encarava a vida de sorriso franco e maroto sempre engatilhado. A Maria Pequena, assim também era conhecida, era a peixeira da terra. Assentava tenda no balcão da estação de caminho de ferro fazendo coro com os rangidos doídos das velhas locomotivas que ali paravam na altura.
Eu era um miúdo de joelhos ossudos e melenas na frente dos olhos que ia apanhar o comboio das 5.30 da manhã para ir para a escola depois de 2 quilómetros de marcha maldizendo a madrugada escura e fria durante cerca de meia hora até lá chegar. Ao chegar a Mariazinha já lá estava de cestas vazias á cabeça abençoando a Senhora da Agonia por me ver chegar são e salvo por entre o temporal. Sacava logo da garrafa termos e enchia-me uma malga de leite com café quentinho obrigando-me a beber tudo até ao fim, que me fazia bem, dizia ela enquanto se metia galhofeira com as minhas pernas finas e me apalpava o cúbito e o rádio – Vês, até se consegue distinguir os ossos, não te alimentas – dizia-me em tom de critica maternal que me acarinhava a alma e o espírito rebelde. Baixava os meus olhos castanhos e deixava-me envolver na meiguice da Mariazinha. No comboio rocinante e cansado, lado a lado nos bancos corridos de ripas de madeira, ela contava-me as desventuras de criar 7 filhos com o seu negócio, de como correu de casa com o marido bêbado por ele não partilhar das azafamas da casa e da vida e ainda lhe aquecer o lombo com o cinto. – dei 100 escudos ao Zé Repente para lhe dar uma sova de aviso, nunca mais lá pôs os pés em casa e foi o dinheiro mais bem gasto da minha vida – dizia ela quase nos convencendo que levou a partir daí uma vida feliz. Eu pela minha parte contava à Mariazinha as minhas desventuras amorosas com uma moreninha de face trigueira que insistia em ignorar os meus avanços e a Mariazinha não me respondia que isso eram tolices como os outros adultos, dizia-me para não desistir, um dia eu ia conquistar a Catarina e ela haveria de ir ao nosso casamento, afiançava-me. De maneira que a Mariazinha era assim a modos que a minha melhor amiga. Aos sábados ainda me guardava as sardinhas mais pequeninas que encontrasse na canasta que transportava no alto da cabeça sem mãos, ocupadas com sacos e sacos que arrastava atrás de si com uma força que nunca percebi.
Um dia a Mariazinha não apareceu, estranhei, perguntei ao chefe da estação se sabia dela mas nada. Ao vir embora mal desembarquei fui ao sítio dela, e não a vi como de costume àquela hora a rematar os últimos carapaus por metade do preço, para deixar a canasta vazia. No dia seguinte disseram-me que a Mariazinha tinha sido atropelada quando ia para a estação naquela manhã e não tinha resistido aos ferimentos. Eu não quis acreditar, que não, a Mariazinha tinha uma força enorme, a Mariazinha resistiria, era como a rocha onde a lapa se agarrava para se segurar do mar revolto. Era a minha rocha, a minha certeza.
A Mariazinha foi a enterrar numa manhã de sol linda como o sorriso que me desenhava todas as manhãs, levei-lhe um ramo de mimosas amarelas que ela tanto gostava que apanhei mesmo ali ao pé da estrada, ela iria gostar da oferta singela, eu tinha a certeza. Durante o féretro senti uma presença ao meu lado, olhei para o lado, a Catarina ao meu lado levava também ela um ramo de mimosas, deu-me a mão… E caminhou comigo.

O mar do teu corpo


Envolve-me a garoa fina
No equinócio deste amor
Sinto-a na humidade do teu corpo
Fronteiras que queremos transpor

Sugas-me a vontade com essa sede
Nesse ir e vir que não entendo
Só provar e beber, saborear
As palavras que me vais dizendo.

Pardal de voo reduzido
Asa para além do amar
Queria transpor e descobrir-me
Nos segredos desse mar.

Ondas amenas que batem no meu rosto
Assim me sabem as tuas palavras
No marulhar de emoções
Sempre ciciadas assim, delicadas.

Queria o turbilhão do amor que me escondes
Maré cheia de ti em vagas alterosas
Queria a espuma dessa água nos meus poros
Meu corpo praia, teu corpo maresia de rosas.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

de um poema e de uma nascente


Cai na vidraça a gota de chuva
Que se espreguiça lentamente
Vidro abaixo, cristalina
Límpida e transparente

Queria ser essa gota
No teu corpo a escorrer
Em direcção á tua nascente
E nela exausto e feliz morrer

Beber vida em ti
No renascer da esperança
A minha sede saciar
Em água de mudança

A amena promessa que me fazes
É azul de luar em noite parda
Corcel de crina solta
No curso da tua ilharga

sábado, 17 de outubro de 2009

Os flamingos que substituiram os peixes


Às vezes sento-me aqui nesta secretária em frente ao pc com a certeza que vou escrever algo, um poema, uma crónica, um novo capítulo do romance esdrúxulo em que consiste a minha vida e regurgito um monossílabo que me impede de assim a classificar. E deveria escrever sobre o quê? A capitulação perante o monitor em branco é contrária á condição em que gosto de me pensar, de alguém que sabe escrever umas coisas. E penso-me imbecil na idiotice falha do meu cérebro. Nada me sai, a não ser um ai de comiseração por este céu-da-boca sem palato, pela visão que me foge das retinas, o silêncio que arrebenta os tímpanos, falanges curtas no tacto que lhes falta. Fico assim confortavelmente insensível como que parado no pilar do tédio que suporta a minha ponte. Não rio e não choro, não corro e já nem o velho berlinde que tipava com os dedos acerta na cova que ansiosamente cavei para a encher de mais berlindes, uns atrás dos outros numa roda de gaiatos que no silencio do jogo faziam uma algazarra que prometia pau no regresso a casa. Hoje olho a cova e ela está vazia como a página no monitor. Nada me sai e não ser uma complacência descomprometida com aquilo que desejava ser, um imbecil que escreve umas coisas. Agradeceria a Deus essa insensibilidade não fosse o facto de me rir de quem abençoa a Deus por ter sobrevivido a um relâmpago sem se lembrar de quem o enviou. Já não há peixes no meu lago, o sal adensou-lhe as águas e fico na esperança que venham os flamingos. Viro lago e as minhas lágrimas servem de repasto mineral aos seus bicos curvos que me penetram as íris.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A mulher que jurou não mais rezar


Sta Bárbara nos proteja – repetiu Matilde ao enésimo trovão que se abateu sobre a serra. O relâmpago que o precedeu abriu dia na noite escura recortando as árvores e o caminho pedregoso na sua memória imediata, ao longe via-se uma ou outra luz de um qualquer casebre resistente à intempérie. A chuva que lhe fustigava o rosto tingia-lhe de roxo os lábios finos e sulcava-lhe na testa rugas de resistência ao frio intenso que lhe comia os ossos. Os pés calçados de sandálias abertas já acusavam o esforço de suportar as pernas finas e retesadas pelo frio que se lhe incrustava na pele auxiliado pelo vestido de algodão empapado no sal do esforço. Mais um relâmpago, seguido de um trovão, mais uma imprecação em jeito de prece á Sta das intempéries, mais um passo, mais um esforço, mais um declive, mais um ramo solto que lhe corta a pele. A chuva aumenta o seu ímpeto, o espaço entre as faíscas e o trovão encurtam as distâncias a cada relâmpago. Matilde tenta vislumbrar o caminho sinuoso que se desenha serra acima e segue a marcha resoluta segurando a lancheira vazia e os sacos de fruta e legumes que o Sr. das terras lhe deu em jeito de paga da jorna nas vinhas. O caminho encontra uma curva repentina num declive que logo sobe formando uma espécie de vale acoitado na encosta de mais um monte que se lhe segue. O pequeno casebre iluminado pela lamparina de azeite foi visão de paraíso aos olhos dela.- Graças a deus – agradeceu Matilde juntando mais uma prece á Sta da sua devoção. Abriu a pequena portinhola da entrada ladeada de pedra de xisto, pisou a laje também de pedra preta e sentiu uma dor repentina no rosto, que lhe atingiu a face direita e se prolongou para o ouvido, sentiu-a primeiro do que o som da estalada que se lhe seguiu que a fez cair desamparada no chão de terra batida da cozinha.- Onde andaste? Isto são horas de chegar a casa? Estamos eu e os teus filhos sem jantar e a senhora na mandriice? – Matilde tenta ajeitar o vestido que lhe cola ás coxas finas e sem lustro curtidas pelo sol do dia e pelo frio da noite.- Óh Home, tu não vês a tempestade que está que arrenega o diabo? O patrão mandou trabalhar até ao fim do dia e tive que abalar de noite para casa.- Faz mas é a janta que ‘tou morto de fome e deixa-te de lamechices porra, as mulheres de hoje só se queixam. A minha mãe teve 7 filhos e nunca fez isto. Ainda ‘tás aí caralho? Não ouviste?Matilde levantou-se silenciosa e começou a fazer o jantar, olhando pelo canto do olho o marido que mordiscava um pedaço de toucinho fumado enquanto esperava a comida atento ao que o rádio ia lamuriando ao som eterno de pilhas gastas.Olhava os filhos encolhidos no canto da cama no fundo da casa cujas divisórias eram cortinas que se recolhiam ao acordar.Matilde fez o jantar, pôs a mesa, serviu o marido e os cachopos, enquanto eles comiam veio cá fora de novo ao frio e alimentou os animais,meteu o dedo mindinho no cu das galinhas para vêr se haveria ovo, reparou com um pouco de sisal uma portada da janela que batia compassada com o vento, entrou de novo na casa fez as camas para o sono que se avizinhava cerrando as cortinas de forma a dar a intimidade necessária, ponteou as meias do marido para o dia seguinte, finalmente sentou-se á mesa e comeu o caldo que entretanto arrefeceu, entalou as couves com o pão duro que moeu com a mão para dar consistência á frugal sopa. O marido recolheu-se na cama e o seu ronco já ressoava no casebre quando deitou as crianças, não as beijou que não sentiu vontade mas obrigou-as a rezar primeiro as três Ave-marias. Varreu a cozinha, lavou os pratos, limpou a chapa ferrugenta do velho fogão.Ao sentar-se no balde com água para as abluções diárias, já com a longa camisa de noite vestida a noite ia alta, a chuva amainara, a trovoada passara. Ao cerrar os olhos na almofada de costas viradas para o homem lembrou-se que não tinha rezado as ave-marias…- Para quê? – pensou ela e deixou que a acalmia da noite a invadisse. Decidiu nunca mais bendizer Sta Bárbara.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O rio que me corro


O rio que me corro
Nasce lá no alto
Desce montes e valados
Toma o vale de assalto

Vem em correria desenfreada
Pelas margens maduras
Do tua boca que profano
No amor que me juras

Espraio-me no teu vale,
Percorro-te os sulcos, preguiçoso,
Que espraias à minha água
Que adentra teu recanto ocioso

Não te penso nascente
Nem sequer leito de nós
Penso-te um fim de mim
Na minha tormenta és minha foz

És todo um mar que adentro
Em maré que quero cheia
És o azul e o verde dessa água,
Da minha saudade, minha panaceia.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Poeta dos sete costados


Acordou envolto num bafo cujo cheiro lhe pareceu a lagar de rosas a boiar em águas que lavaram pés dormentes, coçou a micose do cúbito, afastou para o lado a ressaca que o cobria, arrumou a tontura onde repousara a cabeça e mirou longamente a colher de ternura retinta de queimada, preparou o pequeno almoço ali mesmo aquecendo a colher em botija de gás preparando o mata-bicho que lhe afastariam as gonorreias cerebrais de que padecia. Pronto o caldo e devidamente sugado pela jinga enfiou a ponta da agulha narina acima, o que lhe deixou um sabor de bacon e ovos fritos no céu da boca, soube-lhe a caviar e arrotou uma fossa, cujo cheiro lhe lembrou a água de rosas que entornara no caldo.
Puxou do papel e da caneta que desenhava a carvão e lambeu uns arabescos nas margens de fora do arroto que tinha dado. Amarrotou a defecação e atirou-a ao passeio onde um transeunte distraído a abriu e pôde ler “muito amor ao mundo”, “deus na terra e Cristo no céu”, mais umas letras de um padre qualquer a quem passam a vida a chamar sábio, títulos de livros lidos e parangonas que tais. O transeunte amarrotou de novo o papel e como era adepto da reciclagem enfiou-o no vidrão mais próximo infectado da gripe da moda, virando também ele poeta dos sete costados com palavras que nunca dirá.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

cama de sargaços


E se no mar da minha angustia
Brilhasses tu, estrela luminosa
Que aclara o dia que não é
Na ausência da tua chama fogosa?

Se nas algas do meu oceano
Te fizesse cama de sargaços
Puros como a profundidade
Dos meus mais ternos abraços

Se nessa cama me oferecesses
O sal do teu sabor, a maré do teu prazer
Em vagas ondulantes nas tuas coxas
Contra o meu corpo a perecer

Arrancaria de teus seios o gemido
Quando trova da sereia me cantasses
Perdido no teu infinito
Quando na minha cama te deitasses

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Composto por uma nota só


Vejo a minha vida ao longe
Num desmontar de puzzle,
As separações que o compõem
Entrelaçam-me as cartilagens
Num composto decomposto
Pela minha ausência,
Ossos emagrecidos pela ausência de tutano.
Não virá o quebra-ossos
Elevar-me nas alturas
Para me despenhar
Em queda abrupta do granito
Que composto pela cor da minha partitura,
Nem um dó me dará,
Antes um sol abrasador e inclemente
Que me decompõem nas bermas
Compostas por mim que me observo…ao longe.
Na minha partitura não cabe a minha alma,
Ré do que escolhi ser
Numa decomposição
Que sendo minha sou eu
Que a componho numa sinfonia
Desequilibrada
Sem mi, nem si, só o sol
Inclemente que me apascenta embrutecido
Na pedra gasta por outros ossos meus
Que a besta lá do alto vai despenhando
Na busca do tutano que já sugou

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Um dia, quem sabe...


Num trajecto
Que ainda não inventei,
Num caminho
Cujo inicio não vislumbro
Nas sendas
Orvalhadas da memória
Que não pressinto,
De uma noite
Que começa ao nascer do sol,
Vejo na lua prateada
O deambular furtivo
Do que se faz anunciado
Sem aparecer
Na espera
Interminável da esperança
Que é a certeza do aziago dia
Das madrugadas de sol poente.
E será o reencontro da minha negação,
O botão que encontra a rosa,
O dia que se funde na noite,
Predador tornado presa.
O sal das minhas lágrimas
Adoça-me o limbo da espera,
Um dia, quem sabe para lá de mim…

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Não me apetece escrever


Eu vou escrever qualquer coisa,
Olho o espaço em branco,
Vazio de mim,
Da minha verve que não escorre.
Tinjo-lhe a alva expressão
Maculando-o de um sangue exaurido
De tanto correr em veias secas
De sentimentos amarfanhados
Que caem inertes no lixo.
Numa sanha destruidora
Puxo de outra folha
Numa raiva que só o branco
Sem mácula me sugere,
As minhas falanges crispadas
Seguram o gume da minha pena
Numa fúria assassina
Que quase rompe a folha
Vertendo-lhe a sanha
De um sentimento sem nome,
O ódio de um amor desconhecido,
Um rasgo de pungência em vómito excretor,
Na alucinação perfeita entre o irreal e a utopia.
Utópica a pena que me corre
Na perseguição do irreal verbo,
Cujo sentido desconheço,
Debruçado na varanda da minha loucura
Em abismos cujo fim não lhes vejo.

Como seria bom atingir o fim,
Desabar em pino vertical
E mergulhar no branco alvo
Cuja limpidez o meu ego escurece
Para lá do que consigo vislumbrar
Num negro perfeito de branco sem igual,
Rodeado do mais puro som de um silêncio impar.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009


Na tua varanda e eu na minha
Tínhamos uma realidade paralela
Da minha via-se a tua, da tua a minha
Sem que os nossos pais dessem por ela

Recitava-te um poema na hora do terço
Quando à Senhora se rezava a novena
Via teu olhar gaiato, enrubescido
Perdia-me de amores nessa face morena

Encontrávamos pontos de fuga
Roubávamos beijos às escondidas
Não quero nunca esquecer
Essas promessas que julgas perdidas

Na tua varanda e eu na minha
Fazíamos bolinhas de sabão
Soprávamos com uma palhinha
Criávamos essa terna ilusão

De a minha e a tua bolinha
Se encontrarem lá no alto
Fundirem-se numa só
E o teu coração tomar de assalto

Nessa bolinha tudo nos era permitido,
Dizer-te que te amo e ouvir tua voz
Responder-me que sim, que o infinito
Nos pertencerá sempre a nós.

Não rebentou nunca essa bolinha
Multicolor, cor do céu e do nosso amor
Sobe ainda para lá da nossa vontade
Cor de esperança e de ardor.


Tanto, tanto...

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

o sal do teu (a)mar


Via ao longe o mar
Que me falava de amores
De azul intenso, verde a perder de vista
E outras cores

Dizia-me o mar
Do amor que trazia e guardava
Um profundo como seu ventre de sal
Outro que na praia desaguava

Era de carinho e ternura que me segredava
Com meus olhos no seu horizonte
Sentado naquela praia de mar cantante
Como se fosse a cristalina fonte

Da saudade que nos une
Dos remos que damos á esperança
De vogar assim no mar
E abraçar-nos em serena temperança.

Nesse dia quente não falamos mais de carinho
Nem saudade, mesclada pelo marítimo ar
Eu e tu olhos nos olhos decidimos para sempre
Conjugar o verbo amar

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

essa palavra...ternura


Essa palavra, carinhosa e meiga
Presente na saudade, a ternura!
Não será ela a semente
Entranhada na pura fundura?

Porque o sentimento é universal
Quando de ternura falamos
Poderá ser de amor, carinho
Quando a saudade atravessamos

É de ternura que se faz um filho
É de ternura que cubro o teu corpo
De ternura te talho assim
Mármore cinzelada a escopro

Sem ternura não existia o que nos une
Pálpebras de sal banhadas em orgasmos
Em êxtase que quero sentir, e sinto
De cada vez que falamos

De cada vez que adivinho a tua voz
Ao meu ouvido, em pura candura
É de mim, de ti, de nós
Que falas em quente ternura

domingo, 6 de setembro de 2009

Luto pela tua ressurreição


Sempre te procurei desde o primeiro vagido,
Quando rompi o ventre da minha mãe
Sem sequer te conhecer,
Sem saber o teu nome
Era por ti que clamava.
Em cada canto que te dedicam
Invejo-lhes a inspiração,
Em cada poema invejo-lhe a rima
Soa-me a diferente tudo o que te repetem
E sinto sempre insuficientes
Os elogios que te proferem.
Vejo em cada traço que te desenham
As curvas que te compõem
Em cada letra do teu nome
É o infinito que aponta o ocaso do teu horizonte
Tão difícil de alcançar como em te preservar
És a gaiata de riso aberto, de mão em mão,
Infiel mas leal
És de todos sem ser propriedade de ninguém.
Por ti Liberdade farei todos os sacrifícios
Menos chorar a tua morte.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O teu lenço branco


Não sei que mais te diga,
Nas margens do sofrimento
Escrevi-te o poema
Que desdenhas sem lamento

Dás-me um sorriso amarfanhado
No desdém em que o compões
Sugas-me o instinto e a inspiração
E nem vês como me pões

Subi o escadario do Sameiro
Em penitência rezei ao bom Jesus
Na Sta Luzia roguei em promessa
De um olhar teu que me desse a luz

De nada valeram minhas promessas
Escorreu do alto monte a minha oração
Lágrima vertida na urze e na giesta
Dos verdes pinheiros em gestação.

Cai o Outono na minh’alma
Anuncia-se em mim o frio inverno
Sonho com o dia que me dirás
Que acabou enfim o meu inferno

Guardo ainda o lenço branco
Que me deixaste nessa tarde
Quando na romaria olhei teu rosto
E no meu coração fizeste alarde

Penso hoje que mo deste
Com um firme propósito
O de enxugar as lágrimas
De que se tornou depósito.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

a foto que me deste


Lembro o teu jeito gaiato
No dia que finalmente te apareci
Na foto que me deste
O sorriso mais lindo que vi

Em fato de banho escuro
Que realça a tua pele clara
Mal esconde as formas que desejo
A tua flor que adivinho rara

Queria ser a água que te banha
Nessa foto à beira mar
O sol que te ilumina
O calor que vem a tua pele beijar.

Lembro o beijo que me deste
Quando parti naquela manhã
O que me disseste ao ouvido
Não foi uma promessa vã.

Espero a hora de descobrir
Os fiapos de pele que só adivinho
A ternura e a macieza que escondem
Que me vão pôr em redemoinho

O banco...


O banco era em ferro fundido, com uma velhice orgulhosa que datava da época vitoriana. De assento corrido virado ao mar na marginal aquecida por um sol tímido. Ocupado por dois ciclistas extenuados das voltas contínuas e repetidas diariamente, o banco testemunhava a entrada da manhã quando o sol dilatava as ripas de madeira mil vezes substituídas e agora ocupadas por duas velhas entretidas no croché e na maledicência da filha da vizinha que marcara casamento á pressa. O sol ia mudando a sua posição na elipse diária carregando agora o sobrolho numas nuvens ameaçadoras que o insistiam em seguir na curva que estabelecia.
O banco tinha nas pontas um espaldar para os braços em ferro dobrado à força de calor e martelada formando um semicírculo perfeito onde o velho pescador descansava os braços da labuta de tantos anos que já lhe perdera a conta. Via as ondas a bater no molhe e semicerrava os olhos como que lhe adivinhando a violência de encontro ao leme imaginário que segurava nos braços dormentes.
Na tarde exausta que caía enfim o banco ficava de frente para o farol que guiava os marinheiros desde que existia ali e sentia a luz que ia e vinha no movimento perpétuo com que o afinaram. Era o traje de gala para a noite que se adivinhava onde o banco desta feita fazia de leito aos namorados, anfitrião de juras de amor que o velho ali mesmo tinha feito. Queria agora o velho reunir-se de novo ao objecto das suas juras no céu estrelado. O banco ficaria ali como sempre testemunhando as arribas das traineiras no mar encapelado que lhe salpicava os bordos debruçados sobre o molhe.
Não enferruja o velho banco, nem com os salpicos da água, nem com a chuva que por vezes o torturava, nem com o suor da refrega dos amantes, nem com as lágrimas das mulheres que perdiam os homens nessa tarefa inglória de arribar.

Elegia da loucura


Eu não sou eu,
Nem sou o outro,
Nem sequer sou…
Sou algo de ininteligível
Entre mim e o outro,
Farrapo diáfano mesclado
De uma teia emaranhada
Na trama que teço
De um outro que não eu.
Rompo a cervical
Em movimentos alucinados
Para lá e para cá
De mim, para o outro
Num batucar nervoso
Que me rompe as falanges
No batuque do outro,
Ponte de intermédio
De margens opostas
De costas voltadas,
Interstícios rebuscados
Que fedem em defecações estagnadas
Num devir mictório
Que reluz amarelo na noite urinária
Que não ordinária
Por uma ordem desordenada.
Rasto de sangue e puz
Que água benta não lava
Excretada por cus papais abençoados

Eu não sou eu…
Nem sou o outro
Sou grão burilado
Pela poeira soprada
Da boca do outro
Vela enfunada pelos ventos alísios
Anticiclone manso
Do cabrão que não sou eu
Suco gástrico e aziático
De uma modorra pestilenta
Que se me esgota pelos apêndices
Por todos…
Sem saber … nem vir.
Só lá…escorre-me pelos cantos da boca
De lábios que não são meus.
Do outro?
E porque lhe sinto a amarga pestilência?

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Mushimá uêlê


Vou cumprir a promessa que te fiz
Ainda pequenino e de malas aviadas
De um dia te voltar a abraçar,
Renovar as esperanças entretanto goradas

Trazia nos olhos a espuma das cataratas,
Kwanza em queda abrupta na Duque de Bragança
Nas narinas o cheiro do capim do Cacuaco
E a velha estrada do Caxito, ainda na lembrança.

O velho embondeiro que servia de forte
Estará ainda lá orgulhoso e altaneiro?
Será ainda a testemunha silenciosa
Da flor que lhe roubei prazenteiro?

Para colocar nas missangas às cores
Que adornavam as tranças
Finas e meticulosas da namorada
Morena, que decorava as minhas lembranças.

Quero percorrer os teus caminhos,
Aferir do quanto envelhecemos
Longe um do outro, mas porém perto
Porque juntos esse caminho percorremos

Dir-te-ei da saudade, dir-me-ás das dores
Que entretanto sofreste, espúria e esventrada
Afagarei o teu chão, sorrirei ao teu povo
Dar-te-ei a mão, quando olhar a velha estrada

Lá longe, sem fim à vista, como o amor que te tenho.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Um boneco sem braço


Rumo sem destino e sem dono
Sem pai, nem mãe que me aconchegue
Não tive em menino o xaile da avozinha
A fartura nunca é prato que me chegue

Morro em cada olhar de comiseração
Para reviver sem motivo aparente
Em qualquer esquina do descontentamento
Prenha de tráfego e gente que me passa rente

Tenho como amigos caixotes de lixo
Onde busco restos de felicidade,
Às vezes, um carrinho sem rodas
Rouba-me à minha realidade

Um barco sem velas, boneca de trapos,
Caderno velho, um lápis partido
Ou até quem sabe, e se deus quiser
Um hambúrguer meio mordido

Uma bola furada, lego desemparelhado
Rádio sem pilhas, boneco sem braço,
Faço dele o menino que sonho ser
Envolvo-o num terno abraço

sexta-feira, 17 de julho de 2009

No meu livro de português


Guardo a tua foto, pequenina
Entre páginas gastas pelo dedilhar
Do meu livro de português
Junto à pétala que se recusa a murchar

No canto da página tem uma marca
Para encontrar sempre o teu sorriso
O vinco que lhe fiz, marca-me a alma
E encontro-te sempre que preciso

Está na página dos advérbios de modo
Para eternizar o amor, simplesmente
Como se fosse nosso o tempo
Enganando a ausência sempre presente

Como presente é o teu sorriso
Que ecoa assim sempre no meu ser
Na marca que fiz na página da vida
No momento que entraste no meu viver

quinta-feira, 9 de julho de 2009

ensaio sobre "o comer"


Já corri toda a Europa, mesmo a antiga com fronteiras que já não existem e outras que entretanto foram construídas, percorri o norte de África, conheci ainda em miúdo a África austral. Da Ásia conheço o que Istambul me deixou ver, serei sempre reconhecido ao povo turco por isso, pelos sorrisos de orelha a orelha com que me convidavam a partilhar as frugais refeições comidas em comunidade onde todos mergulhavam a mão direita para se alimentarem (a mão esquerda é falta de educação e desrespeitosa para com o sagrado oficio de comer). Acompanhavam a refeição com um chá quente e amargo feito em infusão seguindo os trâmites do sagrado Corão.
“O comer” como sói dizer-se em Portugal, é não só para nós como para quase todo o mundo antigo com tradições seculares uma arte. E não há povo como o português para classificar esse nobre acto (o de comer) como arte. Herdeiros de costumes latinos fazemos da mesa a nossa religião e ainda que façam a pé o caminho mais longo até Fátima, o farnel não pode faltar. Mas é de pés debaixo da mesa que esse culto é mais aprofundado. O pão não pode faltar, de milho de centeio, de trigo, não importa desde que não seja aquela coisa insípida de pão integral, tem é que ser encorpado e é a primeira coisa a ir para a mesa. Isso e o vinho a preceito servido de preferência em canecas profusas em quantidade. Se houverem umas azeitonas para acompanhar o pão, tanto melhor, se salgadas bem, é uma maravilha porque empurra a pinga. E começa-se assim por dar o primeiro aconchego a um estômago fustigado por uma fome de meia dúzia de horas, desde o pequeno-almoço, imaginem (!) que não se comia nada! Mas isso é frugal para quem passou tal penitência e ainda tem que esperar pela cozinheira azafamada na cozinha por isso o melhor é vir, só para abrir o apetite, uma alheira ou vá lá uns pezinhos de coentrada. O vinho assim vem em catadupa para sorver as gorduras, e deita mais pão que bem preciso é para chupar o vinho. E eis que o dono do tasco se lembra de colocar um presunto fatiado com um bocadinho de melão. O melão aqui tem o efeito de ser só “para desenjoar”. Finalmente vem a vedeta, que é o prato propriamente dito, pode ser um cabrito no forno, uma xanfana de cabra velha, um bacalhau á lagareiro ou até uma massa á lavrador, tudo caminha empurrado por uns bons copaços (ou malgas) de vinho. É a hora da felicidade suprema do português. É aqui que ele dá azo á fama de “bom garfo”, é aí que se diz que ele tem a “bicha solitária”, se for realmente um fora de série nessa arte diz-se até que ele “come como um abade” vá-se lá saber porquê. Findo o prato principal, pergunta-se se há uma sopinha, “para assentar” diz-se. Se for com feijão, couve e no meio vier uma tora (pedaço de toucinho cozido na sopa) isso é uma dádiva dos deuses e torna-a tão apetecida como o Ronaldo em pleno Santiago Barnabéu. E finalmente e só porque sobra vinho precisa de vir uma “lambeta” que é como quem diz uma sobremesa, chama-se assim porque é sobre a mesa que a queremos, doce, apelativa e carregada de açucares e outras coisas que tais que nos leva a gabar o nosso índice de colesterol a quem quiser ouvir. E finalmente vem mais uma vez, só “para desenjoar” a travessa da fruta “da época”, madura e suculenta e como o vinho já se acabou e a fruta está tão boa e pede mais uma pinga, venha de lá mais uma garrafa. Acabada a fruta fica-se a bebericar o vinho que restou, se não sobrou manda-se vir mais porque sabe bem ficar a saborear o vinho enquanto se fuma um cigarro e se conta umas anedotas badalhocas. Fumados os cigarros e bebido mais uma garrafosa de vinho é hora do cafezinho, curto e forte para alçar o palato a uma bagaceira de truz vinda lá daquele lavrador que todos conhecem, é “para deslaçar”, faz bem ao coração e á digestão. E fica-se então a bebericar findo o café mais uns quantos bagaços enquanto o índice de badalhoquice das anedotas sobe de tom.
O repasto está feito, hora de combinar um lanchezinho lá para o meio da tarde, só para conversar um pouco e provar aquele chouriço caseiro que saiu do fumeiro ainda a semana passada.
Ora digam lá se isto não é um povo de poetas?

quarta-feira, 8 de julho de 2009

poema sem pontuação, nas margens do perfeito.

Eu quero o poema perfeito,
O poema declamado de rua em rua
Nas vielas e ruas escuras
Nos salões e palacetes
Quero-o até nas casas de putas
Onde o verbo no infinito
Rima com a palavra foder
Eu quero um poema sem rimas
Sem margens e marginalizado
Que cante o amor clandestino
A liberdade de boca em boca
Quero-o na boca da parteira
Que desentranha a vida
Na boca do coveiro
Que a entranha na terra escura
Eu quero um poema sem vírgulas
Nem pontos finais quero-o…
Porque sim…
Quero-o na mão que estende a esmola
E na mão que a recebe
A generosidade da palavra
No palato da sopa dos pobres
Quero o poema na chama da lareira
Quero-o no zurzir do vento norte
Quero-o no estupor da criança
De esperança estropiada
De arma á bandoleira
Quero o poema perfeito
Arma de sempre
Em desenhos de cavernas
Porque em cada linha
Ainda que corrida
Eu leio o poema da vida
Umas vezes triste, outras alegre
Mas o poema perfeito
É a alma que se desenha
E em cada alma escriturada
Sou eu que renasço
No prazer de a descobrir

terça-feira, 7 de julho de 2009

crónica sobre a condição feminina


O Sr. José era velho, tão velho que na aldeia ninguém se lembrava dele novo, como seria o seu falar ainda de rapaz ou a voz grossa de homem feito. Na tasca da aldeia onde os homens rompiam as falanges nos balcões de mármore no tamborilar impaciente da chegada de mais uma pinga dizia-se que ele devia ter mais de cem anos mas ninguém lhe dava mais de 50 e picos, 60 e coisa, 70 e tal. Uma indefinição que a jorna da terra lhe sulcava no corpo alquebrado, nos pés de galinha profundos em volta dos olhos, os rasgos no canto da boca que lhe afilavam os lábios já de si finos, e uma testa que parecia percorrida por um arado.
O Sr. José ia casar finalmente com a Zulmira, mulher recatada e trabalhadeira, filha mais nova de um grupo de 15 irmãos e que tinha ficado na casa materna até que o Senhor chamara a mãe para a última morada cumprindo assim a tradição de cuidar dos velhos pais até ao último suspiro. A Zulmira fizera também ela essa dobra na idade em que já não se consegue definir os anos que lhe passaram nas vértebras doidas da espinha dobrada no manejo da enxada. Com a morte da mãe a sua única fortuna era a vaca galega cuja afeição a tinha impedido de a mandar para o matadouro quando os úberes secaram e as forças lhe faltaram para aguentar com o cabresto e puxar o arado e ficou assim a modos que o animal de estimação da Zulmira.
O casamento foi motivo de galhofa e enriqueceu o anedotário da taberna, com piadas que punham em dúvida a virilidade do Sr. José e a capacidade que teria em meter dentro os tampos tão antigos da Zulmira, que todos juravam ceguinhos ela ainda teria por via da sua feiura que afugentara sempre os mais corajosos e afoitos. Por sua vez o Sr. José gozava da fama de mulherengo apesar da idade e contava-se à boca pequena as suas viagens à cidade grande onde gastaria o pequeno pecúlio arrecadado nos negócios fortuitos da venda de gado.
O Sr. José era homem à antiga, que se fazia respeitar e a Zulmira mesmo casada com ele continuava a tratá-lo por Sr. José e dedicava-lhe o mesmo esmero e atenção que dedicou á mãe até à hora da morte. O Sr. José no fim do almoço ia para baixo da vinha no fundo do quintal gozando a sombra prazenteira com uma vasilha de tremoços e azeitonas, um pedaço de broa e uma enfusa de vinho, a qual quando acabava o fazia dar altos berros à Zulmira
- Ó mulher enche-me a enfusa…- e lá vinha a Zulmira quintal abaixo buscar a enfusa vazia, subia o quintal, ia à adega enchia a enfusa, descia novamente o quintal deixava a enfusa ao Sr. José e subia de novo o quintal para continuar os afazeres. O Sr. José era cioso do aprumo do quintal:
- Ó mulher, é preciso podar a pereira.
-Ó mulher, é preciso capar os tomates
- Ó mulher, a alface precisa de ser colhida para ir para a feira.
E a Zulmira lá ia no seu vagar sem nunca reclamar acedendo às ordens do Sr. José.
Um dia na volta de uma das suas misteriosas viagens o Sr. José trazia no alvo colarinho uma mancha suspeita. A Zulmira indagou-o da proveniência de tão indigna nódoa.
- É sabão da barba…- respondeu o Sr. José.
- Não pode ser Sr. José, isso parece aqueles “pozes” que as mulheres finas usam – respondeu a Zulmira numa voz segura e firme que surpreendeu até ao Sr. josé.
- É sabão da barba, é sabão da barba e não se fala mais nisso. – Vociferou o Sr. José num tom de voz que não permitia réplicas. A Zulmira calou-se numa fúria que nunca tinha sentido, a vaca galega afinou a longa orelha percebendo os humores da dona. O Sr José tirou o laço, pegou na enfusa e dirigiu-se para o fundo da vinha seguido pela vaca galega. A Zulmira tinha feito á força de enxada um rego para conduzir as águas da fossa para o batatal enquanto o Sr. José estava fora, este não contando com o fundo rego caiu de frente no rego afundando o corpo em meio metro de águas pútridas e fedidas ricas em húmus para s terras, a vaca Zulmira inadvertidamente colocou-lhe a pata por cima da cabeça parando o andar lento e o olhar no fundo do quintal, abanando a cauda sobre o lombo para enxotar a mosca. A Zulmira estranhando a duração da enfusa que já devia ter esgotado foi quintal abaixo e encontrou o Sr. José afundado na merda e no mijo, já sem respirar, molhado e inerte, a vaca galega mugiu a finados…
Os anos passaram-se e a Zulmira ficou dona das extensas terras do sr. José, as estradas já estavam alcatroadas, o lar de idosos da aldeia já tinha sido fundado.
Ia pela estrada até ao cemitério decorar a campa dos seus pais e do seu Sr. José, à vinda perguntavam-lhe:
- Ó Zulmira, porque não vais para o lar, ao menos lá tinhas companhia, alguém cuidava de ti…
- Eu cá “num” preciso disso, tenho a minha galega que já me faz companhia que chegue – e continuava o seu passo quebradiço apoiado já por um cajado na berma da estrada coma galega a ladeá-la protegendo-a dos incautos motoqueiros e motoristas que aproveitavam o asfalto da estrada para se finarem nas bermas. A galega era a rocha em que contra tudo se desfazia.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

És Minha


Ilha, promontório, península
Escarpa frondosa no oceano
Declive, fundura, abismo
Vento de frente, suave abano

Rua escura, viela estreita
Granito que resiste ao tempo
Deserto o caminho, silêncio
Batido pelo vento.

Alma minha perdida
Que na mão me vieste poisar
Sei que agora de mim
Nunca mais te vais apartar

És minha, como a claridade
Pertence ao sol
Com a força do canto da manhã
Entoado pelo rouxinol

Podes da escarpa
Cair ao mar
Pode a rua
Não ir a nenhum lugar

Mas o teu amor
Esse, morre-me na palma
Da mão, renasce em mim
Sentido único da minha alma

domingo, 28 de junho de 2009

Morte em contramão


Numas águas furtadas de Lisboa, rompe as entranhas de uma mulher uma criança cujo sexo ainda não se sabe, rapidamente envolvida em plásticos e despejada num caixote do lixo.
No Sudão, na região do Darfur morre uma criança esquelética agarrada aos úberes secos da mãe já antes morta de desgosto de uma vida curta na convivência com a morte, a fome e a guerra cujas realidades foram de tal forma únicas que perece assim sem saber que algures àquilo que ela chama existir existem pessoas que lhe chamam vida.
Numa favela do Rio de Janeiro cai fulminado por uma bala perdida um menino cujo sonho era ter uma bola… Morreu sem a ter.
Num mercado em Bagdad, no Iraque um menino cujos pais não conheceu pedia esmola quando uma bomba incendiária o roubou à triste existência, morreu sem lágrimas nem lamentos.
Em Calcutá na Índia nas margens do Ganges ouve-se vindo de uma ruela o grito agudo de uma menina cuja perna é cortada a sangue frio para assim, estropiada aplacar os corações e ser merecedora da iníqua esmola.
Algures em Si-Chuan na china há um infantário com dezenas de meninas á espera que a inanição venha rápido e as livre de uma morte ainda mais sofrida.
Em todas estas crianças apesar de não se conhecerem há pontos em comum:
- Morreram sem saber dançar o “moonwalk”.
- Nunca ouviram o “thriller”.
- Nunca leram revistas de social sobre a triste vida de um milionário preto que queria ser branco.
- Ninguém lhe depositou flores na embaixada do seu país.
- Ninguém… Mas mesmo ninguém lhes chorou a morte.
- Nenhum poeta lhes dedicou um poema.
Morreram enfim, na contramão da hipocrisia atrapalhando o trânsito de mentes canoras que cantam o nascer do sol e desdenharam o seu sol-posto.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Morte ao negro


Morte ao negro da ignorância,
Morte ao negro do pedestal
Que segura a fraca e efémera esconjura,
Aviltante do livre pensamento,
Em voo raso ou altaneiro,
Porque o voo não se explica,
Apreende-se e observa-se.
Morte ao negro da intolerância,
Morte ao negro do egocentrismo,
Porque o voo da garça
Não é menos belo
Que o voo da andorinha.
Será mais nobre o voo do falcão
Que busca a caça no ar
Ou o deambular do abutre
Que espera despojos em terra?
Só quero ter asas e voar,
Intrépido e capaz
Como a águia de altos voos,
Lento e rasante
Como o albatroz
Em ponto de fuga,
Frágil e tremente
Como o beija-flor em equilíbrio.
Morte ao negro de alma
De quem empunha o fuzil
Na tentativa de me cercear.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

medidas exactas


Queria poder parar o tempo
No exacto instante do teu beijo
Sentir nos lábios que me ofertas
Um suave e eterno desejo

Também ele assim parado
Na exacta medida do restolhar
De dois corpos que se unem
Com fome e sede se querem amar

Queria esse beijo com a ânsia
Que espero o teu perfume
A envolvência que me arrebata
E algures em mim solta o queixume

Mesmo quando não estás
A suave espera que te faço
É a exacta medida do meu querer
Ter-te enlaçada no meu abraço

terça-feira, 23 de junho de 2009

Deus?


Será porventura breve
A passagem
Quando os olhos se me cerrarem
Por força do caixão das pálpebras
Outro me cravarão em mortalha de cedro
Não ouvirei as marteladas dos pregos
Introduzidos na catacumba do silêncio
Que enfim me envolverá.
Nada me espera, eu sei,
Que de espiritual e etéreo
Temos o amor dos vivos que nos choram.
Deus a existir não me quererá
Por força da razão da minha recusa
Em lhe aceitar os terrenos caprichos

sexta-feira, 19 de junho de 2009

das mulheres sobre os homens


Ainda em relação ao casamento e agora vendo pelo prisma feminino, também não lhe enxergo virtudes depois da primeira semana de união. Eu sei que depois vão dizer que não, que com vocês é diferente, que continuam muito apaixonadas mas cá entre nós sabemos que não é bem assim, que se tivessem a certeza que ele não lia vocês confessavam que sonham com o Brad Pitt enquanto ele vos calca a bexiga feito um rossinante. Não me digam que não pensam nos mimos que o Patrick Swayze prodigaliza à Demi Moore no fim daquela queca no “ghost” enquanto ressona esvaido aquele barrigudo de cerveja ao vosso lado, sim aquele mesmo que vos fez fazer poemas de amor de fazer corar a Espanca. – quem precisava ser espancada era eu por ter casado com esta cavalgadura – pensam vocês que eu sei. Bem, e quando o anormal começa a comer? Enche aquela boca de feijãopreto, ri-se com os dentes cobertos das cascas de feijão dando um ar de cariado á dentadura de mongolóide que ostenta enquanto arrota para gáudio dos miudos que logo o começam a imitar dando lugar a um concurso de arrotos que as tiram do sério. Eu ás vezes compreendo porque é que quando uma gaja põe os cornos ao marido ele arma uma cena de faca e alguidar, despeja com ela na rua e promove-a a soldado raso entre as meninas que decoram a esquina lá do prédio a partir das 12.00 da noite, mas quando é ao contrário, o anormal corneia a legitima, ela arma uma cena de baba e ranho durante uns dias mas depois perdoa-lhe. Ela chora por o gajo não ter ficado com a outra, e perdoa-lhe porque ele, a pensar que ela o ama muito, dá-lhe umas quecas mais parecidas com as performances que obtinha enquanto ela lhe dedicava poemas. Mas é rápida a mudança, logo, logo ele volta ao mesmo. Provação das provações, ele vai sair com os amigos para uma noite de copos, chega bêbado e com tesão (psicológico), vocês fazem de conta que dormem para ver se o abestunto desiste mas não, ele enfia mãos e outras coisas (moles) por tudo quanto é lado e depois enjoado do balanço vai para a casa de banho vomitar, vomita no lavatório, vomita na sanita, vomita no bidé e adormece deitado no sofá da sala a acusá-las de frigidas… Haja paciência…E depois tem aquela maniazinha de não levantar a tampa da sanita e deixar aquilo molhado para o seguinte que são vocês, apertar a bisnaga da pasta de dentes a meio e deixar o lavatório todo borrado de sabão da barba… - Mas é mesmo burro, não aprende… - além de que para cuidar dos filhos tem sempre uma desculpinha, que mete nojo mudar fralda, mas esquece-se que também mete nojo ouvir e cheirar os peidos dele. Mas minhas amigas não se queixem, enquanto têm filhos conseguem sempre partilhá-lo um pouco com alguém, quando os filhos se forem embora ele vai ficar tudinho para vocês e aí nem a vizinha do 5º esquerdo o vai querer por muito rodada que seja.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

PUSSY, PUSSY, come on in pussy lovers


Gosto muito de ver os poetas e poetisas a falar de amor, é o tema mais abordado, mais cantado, mais adorado. O amor é assim a modos que a água que nos rega e nos faz medrar se somos correspondidos, ou um pontapé entre as gambias (sim, naquele sitio!) se não é correspondido. E agora? Digam-me lá o que isso tem de poético, as senhoras podem não entender do que falo, mas os homens sabem muito bem o que custa um pontapé nos ditos cujos. Desafio esses mais choramingas que andam por aqui sempre a verter lágrimas de amor a escrever um poema com essa dor lancinante nos penduricalhos.
E direis vós: - mas não e tal, áhh porque o amor tem muitas vezes um final feliz e mais não sei quê… - pois, digo eu, eu concordo mas esses finais felizes acabam irremediavelmente com um solene “e viveram felizes para sempre”, ou seja o casal de pombinhos deu como epilogo a esse grande amor que os fez verberar poemas de paixão, um casamento, ou vá lá, uma união de facto que é mais moderno. Ou seja são burros, mais lhes valia deixarem-se andar com essas lamechices de poemazinhos para lá, poemazinho para cá, gritos surdos no peito para lá, corações trespassados para cá. Vi aqui há uns tempos em qualquer lado que se o casamento fosse uma coisa boa não eram precisas testemunhas. E depois, vamos convir que é chato, a primeira semana ainda vá lá, mas acordar ao fim de trinta anos com uma dor no maxilar que uma gaja que dorme ao nosso lado nos enfiou com o cotovelo numa das mil voltas que dá na cama durante a noite, santa paciência… mas não se preocupem, depressa esquecem a dor no maxilar ao ver o susto de mulher que tem ao lado, a dormir num ar abandonado que num poema o poeta classificaria como ar angelical, mas não… A gaja ressona que se farta, produz por baixo dos lençóis gás natural que dá vontade de mandar os Ucranianos cortarem de vez relações com os russos, aquilo dava para canalizar até à Austrália. Mas se pensa que já passou tudo, está redondamente enganado, vem aí a manhã, a derradeira provação. Bem, se ela não lhe apetecer acordá-lo e interromper o sonho delicioso que está ter num terno cavalganço com a Maité Proença já está com sorte, mas de uma coisa não se safa, ao acordar estremunhado a resmungar com o despertador, com a ciática que não o larga, aquela comichão nas virilhas que o faz ter vontade cortar rentes as jóias da família, para além de tudo isso entra na casa de banho e vê aquela mulher com quem andou a desperdiçar poemas de amor, sentada no vaso sanitário com umas cuecas de gola alta penduradas nos tornozelos, o rosto vermelho de esforço na tentativa de excretar um urubu grossíssimo que insistiu em se prender aos esfíncteres e dali não sai nem ninguém o tira exalando um cheiro nauseabundo na casa de banho exígua, que dá sentido que se chame à merda do seu quarto o pomposo nome de suite. E quando um gajo sai para o trabalho ainda querem um beijo nos beiços, não queriam mais nada pois não? Depois somos nós que já não somos românticos… mas há romantismo que resista a isto?

domingo, 14 de junho de 2009

Um menino que me sorriu numa tarde de chuva


Acendi um cigarro, formei uma bola de fumo na primeira baforada que expeli, o menino ofereceu-me um sorriso cariado, perante a façanha propositada para lhe desapertar o laço da língua, ficou assim com o sorriso castanho desenhado, olhitos brilhantes, pele já macerada:

- Queres uma chiclete? – Perguntei-lhe. Abanou um dos ombros como que passando para mim essa decisão, a de ele querer ou não. Eu decidi que sim, e mandei o Jorge dar-lhe a chiclete.

- Diz obrigado ao senhor – Ordenou a mãe numa tentativa de demonstrar que lhe ensinava boas maneiras. O menino desenhou de novo o sorriso primeiro para a mãe, depois para mim. A mãe desenhou outro sorriso, este farseiro de dente em falta, numa aparente disponibilidade que recusei com um desviar de olhar, virando-o de novo para o menino que acorria já ao chamamento da mãe. A rua desenhava-se nevoeiro dentro, salpicado pelos aguaceiros, indolentes as imagens desapareciam à medida que caminhavam. Caminham sempre as imagens, vêm não sei de onde mas sempre em rota de fuga no nevoeiro que as adensa. Até ao sorriso do menino… Adivinho-lhe o sumiço.O cigarro esquecido entre os dedos queimou-me as falanges.

- Vens? – Perguntou-me um amigo que me esperava para almoçar

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Amor vertido pelo chão


Arrancas-me os botões
Em pressas compassadas
Espalhas pelo chão o amor
De suspiros e lágrimas brotadas
Desarrumas-me os sentidos
Vertes-me a alma aos teus pés
Um desarranjo consentido
Entre cadeiras, sofás e canapés
Arrastas-me para a tua cama
Vertes a tua alma no meu corpo
Desenho-to e rasgo-te em linho
Debruo-te a martelo e escopro
Emaranhado de suor, sol e lua
Não descrevem o paroxismo,
Não vertem corpos escaldados,
Verto-te eu no ventre, meu abismo.
Entro sol alto, saio lua cheia
Que ilumina o meu andar
Felino esgueirado nas sombras
Seguido pelo teu doce olhar
Rasgos de corpos vertidos
E nascidos para se amar
Consentido pelo chão
De um amor por arrumar

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Não vás para longe


Não te escrevo há tanto tempo
Que me morde de ti a saudade
Colaste-me na doce lembrança
Ferras-me o amargo da contrariedade
De saber que algures te possuo
De sentir que a mim te queres dar
Adivinhar-te em doce espera
Do beijo que em ti vou poisar
Distância efémera, a que nos separa
Afago cálido, eterna esperança
De em cada partida que encetas
Seja o regresso a doce confiança

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Aquele amor de verão


Naquele verão em que te conheci
Na praia ventosa e desmaiada
Aos pés da serra que se escondia
Da tua bela figura apetecida

Encoberta pelo nevoeiro da manhã
Espreitava entre as nuvens lá no alto
Meu olhar envergonhado e tímido
Meu coração em sobressalto

Deixavas as pegadas na areia
Leve como a brisa que cheirava
Contentava-me tão só em beijar
O chão que o teu pé pisava

Olhava as ondas que desfaleciam
Na praia, nesse terno verão
Sentia-me essa vaga compassada
Maré cheia da minha paixão.

À noite junto ao velho barco
Com a lua como testemunha
Contava as estrelas, com os beijos
Que a tua boca na minha punha

Vejo ainda em contra luz
Na madrugada rarefeita,
Do teu corpo entrelaçado
No meu, em felicidade perfeita.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Dia europeu do(a) vizinho(a)


Eu estou admirado, então onde estão aqueles que acorrem a lembrar-nos dos dias temáticos? É o dia dos namorados já andam uma semana antes a poluir o site com poemas inflamados dedicados aquela (e) a quem andam a fazer olhos de carneiro mal morto. Vem a Páscoa então…é um autêntico lixo virtual. E no natal? Lembram-se todos de ser bonzinhos, é paz e amor para aqui, menino nas palhinhas para ali… prolongam aquilo ao máximo do desespero e da paciência. Já para não falar daquelas coisas de cortes de energia, de andarmos todos de bicicleta, essas então moem-me o juízo. E então hoje? Ninguém diz nada? Pois é… hoje é o dia europeu do vizinho. Por isso a besta do meu vizinho do 2º direito hoje me cumprimentou no elevador. Eu resmunguei-lhe uma resposta á laia de cumprimento, uma forma de o mandar para o raio que o parta em surdina. Pois, tem que ser em surdina que o gajo é um autêntico armário. Mas agora percebi a insistência da vizinha do quinto esquerdo numa visita minha logo á noite que o marido está deslocado para as obras de um qualquer centro comercial lá para os lados de Lisboa (que aquela gente só quer centros comerciais). Tenho para mim que me vai obsequiar com um dia dos namorados antecipado em jeito de celebração por tão bonito dia. Por isso hoje decidi ser simpático com os vizinhos, não escarrar na entrada do anormal do 6º direito que estende a roupa por cima da minha. Não dizer á velha esclerosada do 4º frente o quanto me irritam os gatos dela e o chilrear dos periquitos que põe na varanda. Não riscar o carro do paspalho do R/C que gosta de o estacionar debaixo daquela árvore que dá sombra á qual tenho direito porque vivo lá há mais tempo. Hoje, mas só hoje e por ser o dia que é, não vou dizer aos meus fedelhos para mijarem da varanda para o terraço do abstunto do r/c que se me adiantou na compra do apartamento perdendo eu a oportunidade de ter uma churrasqueira no apartamento, além de que um terraço dá sempre jeito para esticar uma rede e bater umas sornas á tarde. Hoje se partir o retrovisor do gajo que tem lugar de garagem ao lado do meu, vou tentar pô-lo direito e aí sim, se não conseguir não ficarei com problemas de consciência por não lhe deixar um bilhete a avisar. E para celebrar até estou a pensar em fazer-me convidado para comer uma fatia de bolo no fim do trabalho na casa do bigodes do 3º dir. e depois para fechar o dia em beleza vou fazer a visita á tal vizinha, coitada que se deve sentir tão só… Só espero que tenha feito a depilação.
Eu sou um vizinho fantástico…

domingo, 24 de maio de 2009

Ser pobre um dia...


O João da Nora trabalha no campo
Rompe a pele em cabo de enxada
Trabalha também na fábrica
Rompe os pulmões até de madrugada

Respira a bosta de boi durante o dia
O amoníaco ácido durante a noite
Que lhe queima os pulmões e o cérebro
A jorna acaba dorida como um açoite

Leva na lancheira o pão e a tristeza
Por todos os poros arrota desgraças
Já não é novo, ele sabe-o e sente-o
Roga ao Senhor, lhe traga novas graças

E não pede muito o João, velho
Embora de idade seja novo
Pede o direito á diferença
Entre os velhos deste povo

Fecha os olhos ajoelhado ao Altar
E pede a graça de ser pobre um dia
Para que assim não o seja todos os dias
Que lhe renove uma vida sem agonia

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Oh Danny Boy over the green fields of our beloved Ireland


Ès Celta Danny Boy
Vens lá dos confins da história
Orgulhoso dos verdes campos
Da tua Irlanda pátria e glória.

Levanta a cabeça Danny Boy
Não cai sobre ti a vergonha
Continua a tua marcha de orgulho
Mostra-nos a tua face risonha

Menino pobre acolhido
Pela igreja que te traiu
Escravo, te fizeram e possuíram
Na casa que te instituiu

Ergue-te Danny Boy
Que não é tua a peçonha
Tua, são os verdes da Irlanda
Que verguem eles a feia carantonha

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Poema a um Mulherão


Avó Maria, baixinha e anafada
Carrega o neto pela escada
Com cuidado o mergulha na tina
Para um banho em água temperada

Já adulto e sem tino nem razão
O neto só abana as mãos e a cabeça
Em jeito de agradecimento
Esperando que o passeio aconteça

Já lavado e perfumado
Coloca-o a peso na cadeira
E vai apanhar o catorze
Que pára na pasteleira

Carrega-o no autocarro
Perante o olhar indiferente
Do motorista e do passageiro
Adulto imbecil e velha indigente

Sai a avó Maria do catorze
Apanha o metro para o hospital
Em dia de tratamento físico
Para seu neto doente mental

Abandonado pela mãe
Esquecido pelo pai, seu filho
Que a abandonou também
E a deixou neste andarilho

“Porque não o interna aqui?”
Pergunta-lhe o médico no hospital
“E quem me ensinaria a amar?”
Pergunta a avó em ar normal

terça-feira, 19 de maio de 2009

O amor da minha vida


Vou-te continuar a seguir
Ainda que me digam e berrem
Que não tenho razão
Quero-te antes que os olhos se cerrem

A razão com que te sigo
Está na força do meu querer
No chão que piso e calcorreio
No horizonte de vista a perder

Mas não perco a vontade
Nem sequer na corrida o norte
Busco-te em demandas loucas
Quero-te antes da minha morte

E se não te encontrar
Quero nessa busca morrer
Que de mim se diga que morri
Na tentativa de te conhecer

Mesmo que não te veja
Quero a tua face beijar
No leito de esperança em que vivo
Quero que nua e rara me venhas abraçar

Envolve-me o teu longo e doce abraço
Leva-me nos firmamentos em que navegas
Utopia amada, como te quero e amo
Utopia, nunca cansas dos sonhos que carregas

sexta-feira, 15 de maio de 2009

essa palavra, liberdade


Surge-nos a ilha assim de momento
Banhada por intolerância a poente
Causa-nos estranheza que resista
Ás vagas da inquisição a nascente

Libertou-se da gravata e do laço
Maculou o alvo colarinho
Verberou o ímpio maldizente
Mostrou afilado o feio focinho

Lançou sobre ela a matilha
De raivosos e de ira lançados
Sobre ela que é tua e minha
Os cães, rafeiros de toga trajados

Mas a palavra não se deixa vencer
Vive mesmo quando fala de morte
É ilha altaneira cume de rocha
Que as vagas e outro tipo de sorte

Ainda que monstruosas e diletantes
É essa soma que escreve verdade
É por um simples conjunto de letras
Que se escreve palavra e liberdade

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A sina da minha aldeia


Do alto da serra o vento espreita
A neblina clara e fria mais abaixo
Vislumbra telhados fugazes
Na povoação que se esconde debaixo

Pequena aldeia empedrada
De paciência e suor construída
Teimosa, rompe os ventos
E a tempestade empedernida

Em dias de sol e flores de estio
Espreguiça-se dolente serra acima
Serpenteia os riachos cantantes
Deslumbra quem se aproxima

Esconde um segredo a velha aldeia,
No granito cinzento que a compõe
Vive as gentes desta terra esquecida
Esquecidos por quem deles dispõe.

Das mesmas mãos que a construíram
Entra o papelucho na preta urna
Com uma cruz num boneco qualquer
Alarve, eleito espera qu’essa gente durma.

O mesmo segredo, já há muito
Deixou de ser, cochichado a preceito
choram-se da miséria e da fome
A que os votou quem foi eleito

Inutilidades


O dia caiu maduro coberto pela noite
O sol pôs-se nesse dia a nascente
Na elipse que descreveu, prometeu
Nascer no outro dia a poente

Os rios viraram ao contrário
Inverteram o sentido da corrente
Começaram a nascer no mar
E a desaguar na ínfima nascente

A lua envergonhada não mais namorou
De lua cheia virou quarto crescente
E veio para quarto minguante
Perdeu o brilho de beleza aparente

Secou o mar e secaram as fontes
Secou o brilho dos teus olhos salgados
Vencidos pela força da intempérie
Cristalizaram lábios outrora molhados

A vida deixou de se chamar assim
Na impossibilidade da morte
Sem sentido, existência inútil
À vida passou-se a chamar sorte

terça-feira, 12 de maio de 2009

O velho que morreu sem ver o mar


Velho como a serra que calcorreia,
De perna bamba, às costas o cajado,
Barba rala, nariz adunco, pele macerada
Por companhia leva as ovelhas ao lado.

Suja e gasta presa nos finos ossos
A carne que lhe resta entremeada na pele
O velho caminha sem destino e sem lar
Exaurido pelos anos que das narinas expele.

Barqueiro sem barco, nem jangada
Em rio sem vida de margem estreita
Sobe a serra em passo dolente
Na busca de pasto e da paisagem perfeita

Nos olhos reflecte o verde dos montes
Mas era o azul imenso que ele queria,
Do grande rio sem margens, que lhe falam
As gentes que dali saíram um dia.

Um rio imenso onde pastaria sonhos
Perdido no alcance da margem inatingível.
Lá onde o céu se une a esse rio
Podia ser então o seu sonho possível

Ser menino outra vez e nos pés ter areia,
Não a terra ingrata que nunca o soube amar,
Morrer desfalecido na visão do azul,
Do imenso azul do céu e do mar

Templo


Busco a manhã nos teus olhos
O orvalho que te escorre na íris
Te limpa o rosto beija-te os seios
Teu ventre abençoado por Osíris
Terra mar e ar confundem-se
No horizonte do amor que te sinto
Afrodite do meu imaginário
Tornas-me de ti Baco faminto
Saboreio-te aos gomos
Pedaço a pedaço em oração
Descubro o teu santuário
Oráculo do meu coração

quinta-feira, 7 de maio de 2009

memórias


Sou um rapazinho com uma memória excelente, diria mais até portentosa. A minha mãe ainda hoje se admira das coisas que sou capaz de ir buscar ao baú das recordações. Fica pasmada por exemplo quando falo da primeira recordação de que me lembro, uma coisa do outro mundo, diz ela. Indo aos primórdios da minha existência tenho como primeira recordação ter ido a um piquenique com o meu pai, e vir com a minha mãe. Lembro com exactidão o tinto carrascão que o meu pai levou como parte operante nesse convívio que depois me deu uma azia tamanha que ainda hoje sofro dela.
Enquanto (quase) toda a gente só começa a ter recordações a partir dos 4-5 anos de idade, eu nessa altura já brincava aos médicos e enfermeiros com a Zé (Maria José – nome fictício porque a mocinha hoje é casada e mãe de filhos e o marido pode ficar chateado), lembro as borbulhas nas nádegas na hora em que lhe ia dar as picas (este tratamento era medicado para todas as maleitas que a mocinha se queixasse, fosse constipações ou diarreia), a cuequinha branca que afastava para meio das coxas da rapariguinha e sentia crescer em mim coisas que só muito depois fui capaz de explicar pese embora a minha inteligência avançada para a idade. Mesmo a mocinha que passados alguns anos era afoita a tratamentos desse tipo e nessa altura também ela detentora de uma excelente capacidade de interpretação não percebia essa minha elevação de espírito.
Lembro os beijos que a Rita me dava para me ensinar a beijar de língua (nome também fictício por motivos óbvios). A Rita era um pedaço mais velha que eu, já sabia o que fazia e decidiu ser minha professora nessa nobre arte de beijar e consequências tais. Ainda hoje me diz a rapariga que eu fui o melhor aluno dela. Entrevejo na memória desses instantes o decote generoso onde ela me metia a mão para me explicar como se apalpavam os dilectos úberes de que era possuidora. De como me impulsionava pelas ancas numa pura demonstração da nobre arte de cavalgar toda a sela.
Lembro a minha catequista da comunhão solene (ai, a Natália!) o quanto me martirizava os joelhos nas longas rezas que me punha a fazer, porque foi ela que me deu a conhecer a verdadeira noção do pecado, ainda hoje lhe agradeço por isso, lembro as mimosas amarelas no meio do monte e dos problemas que tínhamos em descobrir as cuecas dela (também amarelas) arrancadas no frisson e jogadas Deus sabe lá onde (estão a ver a importância do catecismo aqui?).
Já no colégio interno saltava os muros para ir ter com a Cristina, sábia na arte de se fazer santa e na arte do cavalgar. Essa mostrou-me como é bom por vezes ser passivo, entregar as rédeas e ser sela, cavalgadas em disparada…
Um dia…continuo… ( não queriam mais nada pois não?)