quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A mulher que jurou não mais rezar


Sta Bárbara nos proteja – repetiu Matilde ao enésimo trovão que se abateu sobre a serra. O relâmpago que o precedeu abriu dia na noite escura recortando as árvores e o caminho pedregoso na sua memória imediata, ao longe via-se uma ou outra luz de um qualquer casebre resistente à intempérie. A chuva que lhe fustigava o rosto tingia-lhe de roxo os lábios finos e sulcava-lhe na testa rugas de resistência ao frio intenso que lhe comia os ossos. Os pés calçados de sandálias abertas já acusavam o esforço de suportar as pernas finas e retesadas pelo frio que se lhe incrustava na pele auxiliado pelo vestido de algodão empapado no sal do esforço. Mais um relâmpago, seguido de um trovão, mais uma imprecação em jeito de prece á Sta das intempéries, mais um passo, mais um esforço, mais um declive, mais um ramo solto que lhe corta a pele. A chuva aumenta o seu ímpeto, o espaço entre as faíscas e o trovão encurtam as distâncias a cada relâmpago. Matilde tenta vislumbrar o caminho sinuoso que se desenha serra acima e segue a marcha resoluta segurando a lancheira vazia e os sacos de fruta e legumes que o Sr. das terras lhe deu em jeito de paga da jorna nas vinhas. O caminho encontra uma curva repentina num declive que logo sobe formando uma espécie de vale acoitado na encosta de mais um monte que se lhe segue. O pequeno casebre iluminado pela lamparina de azeite foi visão de paraíso aos olhos dela.- Graças a deus – agradeceu Matilde juntando mais uma prece á Sta da sua devoção. Abriu a pequena portinhola da entrada ladeada de pedra de xisto, pisou a laje também de pedra preta e sentiu uma dor repentina no rosto, que lhe atingiu a face direita e se prolongou para o ouvido, sentiu-a primeiro do que o som da estalada que se lhe seguiu que a fez cair desamparada no chão de terra batida da cozinha.- Onde andaste? Isto são horas de chegar a casa? Estamos eu e os teus filhos sem jantar e a senhora na mandriice? – Matilde tenta ajeitar o vestido que lhe cola ás coxas finas e sem lustro curtidas pelo sol do dia e pelo frio da noite.- Óh Home, tu não vês a tempestade que está que arrenega o diabo? O patrão mandou trabalhar até ao fim do dia e tive que abalar de noite para casa.- Faz mas é a janta que ‘tou morto de fome e deixa-te de lamechices porra, as mulheres de hoje só se queixam. A minha mãe teve 7 filhos e nunca fez isto. Ainda ‘tás aí caralho? Não ouviste?Matilde levantou-se silenciosa e começou a fazer o jantar, olhando pelo canto do olho o marido que mordiscava um pedaço de toucinho fumado enquanto esperava a comida atento ao que o rádio ia lamuriando ao som eterno de pilhas gastas.Olhava os filhos encolhidos no canto da cama no fundo da casa cujas divisórias eram cortinas que se recolhiam ao acordar.Matilde fez o jantar, pôs a mesa, serviu o marido e os cachopos, enquanto eles comiam veio cá fora de novo ao frio e alimentou os animais,meteu o dedo mindinho no cu das galinhas para vêr se haveria ovo, reparou com um pouco de sisal uma portada da janela que batia compassada com o vento, entrou de novo na casa fez as camas para o sono que se avizinhava cerrando as cortinas de forma a dar a intimidade necessária, ponteou as meias do marido para o dia seguinte, finalmente sentou-se á mesa e comeu o caldo que entretanto arrefeceu, entalou as couves com o pão duro que moeu com a mão para dar consistência á frugal sopa. O marido recolheu-se na cama e o seu ronco já ressoava no casebre quando deitou as crianças, não as beijou que não sentiu vontade mas obrigou-as a rezar primeiro as três Ave-marias. Varreu a cozinha, lavou os pratos, limpou a chapa ferrugenta do velho fogão.Ao sentar-se no balde com água para as abluções diárias, já com a longa camisa de noite vestida a noite ia alta, a chuva amainara, a trovoada passara. Ao cerrar os olhos na almofada de costas viradas para o homem lembrou-se que não tinha rezado as ave-marias…- Para quê? – pensou ela e deixou que a acalmia da noite a invadisse. Decidiu nunca mais bendizer Sta Bárbara.

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