quarta-feira, 29 de abril de 2009

retalho XVIII , sem hora de partida


Ao longo do corredor comprido ladeado de armários em chapa, Francisco caminhava com os olhos postos no chão, observando os ladrilhos sujos nas intersecções com o olhar parado e a mente em rebuliço pelo aviso repentino para ir á direcção da escola. O contínuo que agora lhe guiava e marcava a cedência dos passos entrara de repelão pela sala interrompendo a aula:
- O Francisco tem que ir já á direcção – dissera.
- Mas, o que foi que eu fiz? - Apoquentara-se o Francisco com tão inusitada intimação que normalmente significava castigo por alguma malandrice.
- Nada filho, o director é que quer falar contigo – respondera o contínuo em tom condescendente. O tom do contínuo descansara-o pela desmesurada candura que o surpreendeu, pondo-se assim em marcha, atrás do contínuo após assentimento do professor
Mas no caminho ia pensativo pelos motivos da solicitação, divagando a mente e o olhar pelo longo corredor do liceu, olhou para lá das vidraças observando as árvores fustigadas pelo vento, as balizas sem rede do campo de futebol, o lamento da chuva escorrendo no vidros sujos. Olhou as unhas para ver se estavam limpas que o director era exigente nessas coisas, sacudiu a roupa tentando retirar restos da borracha dos lápis que se pegavam às malhas. Apareceu-lhe na testa a mesma ruga horizontal que a mãe, a Odete, fazia quando as preocupações eram muitas. Aos poucos começou a sentir o aperto e o frio do tempo lá fora a invadi-lo numa premonição que não lhe augurava nada de bom. O seu corpo era franzino, não herdara a corpulência do pai, antes a beleza serena da mãe. A intuição, a candura no olhar faziam lembrar sempre a mãe a quem os conhecia:
- Ó Odete, para fazer este não precisaste da ajuda do “home”, ele não tem nada do teu Artur. Fizeste-o sozinha, não? – E riam as comadres na algazarra dos fins de missa.
Chegaram ao gabinete do director, o contínuo bateu á porta e abriu-a de seguida:
- Já tá aqui o Francisco Sr. director – anunciou respeitosamente.
- Ele que entre Sr. Lopes – respondeu lá de dentro o director em voz grave e séria.
O Francisco sentia os joelhos a fraquejarem, entrou a medo e desconfiado, mirou o director sentado a pigarrear perante os inúmeros papéis que ocupavam a secretária.
- Senta-te – ordenou o director tentando colocar um tom de voz claro e sem a aspereza que a caracterizava. Francisco obedeceu, sentou-se na larga cadeira com as mãos crispadas entre as pernas, ombros caídos, olhar vago sem pronunciar palavra.
- olha filho – começou o director – aconteceu algo muito mau mas quero que tenhas noção que a vida é mesmo assim, é feita de partidas e chegadas. Algo de divino que não entendemos faz as suas escolhas e nós aqui em baixo resta-nos aceitar e pensar sempre que é a sua vontade. Não nos devemos nunca revoltar, antes aceitar e glorificar a sua presença sobre nós.
Francisco não estava a perceber nada dos preâmbulos do director, fixou o olhar no pisa papéis em vidro grosso com um escorpião embalsamado, a longa cauda pontiaguda, a cor preta do lacrau… enquanto o director continuava o discurso de afago desconcertante de dores que ainda não sentia mas sentia prestes e numa explosão perguntou:
- Mas afinal o que aconteceu á minha mãe? - Perguntou já num tom apavorado como se as palavras do director tivessem feito luz no seu íntimo.
- Nada filho… foi o teu pai, faleceu esta manhã – desabafou o director quase num suspiro de alívio. De repente uma janela cedeu ao esforço do vento e abriu intempestivamente, pondo os papéis da secretária num redemoinho, o director levantou-se a correr a fechá-la, e a apanhar os papéis espalhados no chão. O Francisco ficou indiferente, envergonhado pelo alivio que sentira ao saber que não tinha sido a mãe, o pai nunca foi o companheiro que muitas vezes quisera mas naquele momento lembrava-se do balão que lhe dera no dia da romaria já há uns anos, lembrava-se de quando ele o ensinara a andar de bicicleta, a sensação de segurança quando ainda bebé lhe transmitiam os seus braços fortes, o apelo másculo do filho pelo pai, diferente do apelo maternal da mãe, do mimo e dos afectos. As lágrimas corriam-lhe profusas e silenciosas, herdara da mãe o silêncio do choro, fixou de novo o olhar no pisa papéis numa visão enevoada pela lágrima teimosa que lhe pendia dos olhos rasgados, o escorpião lá continuava imóvel mas feroz como a fama que tinha.

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