quarta-feira, 1 de abril de 2009

Retalho XV, silenciamento


O Sr. Miguel Tondela de Barros era dono de mais de meia aldeia e a outra meia prestava-lhe vassalagem por medo ou por necessidade dos préstimos que fazia á populaça ficando sempre esta a dever-lhe favores. Sentado à secretária do seu gabinete ponderava as acções a tomar perante os últimos acontecimentos. Olhou o quadro de Dali na parede em frente, onde uma mulher de seios desnudos irrompia das águas do mar entre penhascos, ofuscando com a beleza emprestada pelo pincel do artista toda a beleza selvagem em seu redor. Imergia pensativo naquele mar deambulando pelos receios e ódios que o acometiam naquele momento. Tinha que tomar medidas, já, rápidas, antes que os sócios soubessem daquela importuna visita. Tinha que juntar os dois verdugos que tinha a soldo e tomar as acções que se impunham. Ligou o intercomunicador e ordenou para a secretária:
- Ligue ao café e diga ao Tónio para vir ter comigo a minha casa imediatamente –
- Sim Dr. Miguel Barros – Miguel nunca se tinha licenciado mas impunha o tratamento de Doutor aos seus funcionários, mas normalmente todos o tratavam por patrão tal como ao seu pai antes dele.
- Diga também ao motorista que prepare o carro para me levar a casa.
Feito isto apressou-se a sair, vestiu o sobretudo de caxemira, e encaminhou-se para a saída do complexo de escritórios onde o motorista já o aguardava.
Entrou no carro e aconchegou-se nos estofos de cabedal dos bancos.
- Leva-me para casa. Ordenou ao motorista
O carro pôs-se em andamento num ronco suave, galgando a estrada fronteira ao edifício, transpôs o portão de fábrica e aumentou a velocidade na via empedrada em paralelo de granito cinzento e gasto como o tempo que se fazia sentir. Chegado ao portão de sua casa o motorista parou o carro e saiu como sempre para abrir o portão sob o olhar pensativo de Miguel Barros, ao acercar-se do portão ouviu-se um disparo, o motorista caiu sobre os joelhos, acto contínuo viu-se uma mancha de sangue a alastrar nas costas do casaco do uniforme…sem pensar Miguel Barros abre a porta repentinamente e corre na sua direcção, outro tiro…o motorista agita o corpo e cai dobrado sobre si mesmo. Antes ainda de chegar ao pé do motorista, Miguel sentiu primeiro a dor lancinante a atravessar-lhe o tronco, só depois ouviu o tiro, atirou-se para o chão de imediato na tentativa de fugir ao segundo tiro que adivinhava prestes, e novo sentiu a mesma dor insuportável atravessar-lhe a coxa direita, tenta rastejar em direcção ao carro, o terceiro tiro atinge-lhe a nuca e Miguel Barros deixou de ter dores…
Um vulto saltou da árvore em do outro lado da estrada, entra num carro ali estacionado e arranca a toda a velocidade…
Um vulto esguio afasta-se ocultado pela sombra de uma sebe…

- Rosa Maria – Fica aqui ao balcão um bocado que tenho que ir ao patrão que ele chamou-me. Diz o Tónio á mulher que esbaforida irrompe da porta de comunicação da mercaria com o café.
- porra home, e vou ficar aqui com a mercearia e o café sozinha? – retrucou a Rosa
- Faz o que te mando caralho, ou arranco-te esses dentes, não ando com paciência para te aturar. Dito isto a Rosa calou-se e o Tónio arrancou pelo café fora fechando a porta com estrondo.
- Boa coisa não é, sempre que o patrão chama vai logo lamber-lhe o cu, só tem tomates ‘pá mulher e ‘pós filhos e para os clientes bêbados. Cogitava a Rosa com seus botões, de repente ouviu um estrondo.
- Cruzes, credo – gritou a Rosa imobilizando-se de terror perante o estrondo familiar. Deu a volta ao balcão, outro estrondo… - Ai minha nossa senhora, óh Tónio – chamou num grito aflito. Abriu a porta da rua, um carro preto arrancava a toda a velocidade não dando para a Rosa lhe perceber sequer a marca, ficou especada a vê-lo desaparecer na curva logo ali, olhou para o outro lado, o seu Tónio jazia numa poça de sangue cujo cheiro quente empestava a manhã de inverno.
Do outro lado da estrada o vulto ocultou-se por trás do velho carvalho.

- Ó Artur, vai á arrecadação buscar uma chave de rodas para o empilhador – Disse o mestre mecânico ao impaciente Artur que não parava de congeminar na notícia da manhã.
Sem sequer responder Artur encaminhou-se para a grande arrecadação. Ao entrar ligou o interruptor, mas a luz não acendeu.
- Foda-se, as putas das luzes estão sempre a fundir, ainda vou ter que mudar a lâmpada, que dia de merda! Artur seguiu o seu caminho às apalpadelas para o sítio das lâmpadas, ouviu um ruído, como um arrastar de pés. Imobilizou-se, calado:
- Quem está aí? Gritou… de novo o mesmo barulho, agora mais perto…
- Foda-se, quem está aí, se é alguma brincadeira aviso já que hoje é mau dia.
Artur ainda lhe sentiu a respiração na base do pescoço, uma mão forte agarrou-o por trás torneando-lhe o pescoço com uma força de ferro, sentiu a picadela pelas costas á altura das costelas como que tentando abrir espaço entre elas, sentiu a roupa, depois a carne a ceder, o terror instalou-se nas órbitas abrindo-as desmesuradamente, quando a lamina lhe atingiu o coração Artur já estava morto pela aceleração do coração descompassado. O homem desenterrou a faca do corpo de um só gesto e limpou a lâmina nas roupas de Artur. Veio á estrada, espreitou e desapareceu no buliço dos funcionários.
Fora do muro alto que ladeava o estaleiro da fábrica o vulto alto inicia a descida do velho eucalipto, quase tão velho como a rocha do alto da Serra.

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