quarta-feira, 14 de abril de 2010

O sol por uma fresta


O Manuel levantava-se com os primeiros raios de sol que escorriam pelas frestas da persiana do T1 que habitava com a Madalena e seus dois filhos. Ia para a casa de banho onde fazia a barba e enganava a sujidade com umas borrifadelas de água gelada nos sovacos e nas virilhas que o gás para o esquentador só com o 13º se conseguia, o resto do ano aquecia-se a água para os banhos e de manhã não havia tempo nem pachorra para isso.

O Manuel depois de acordar a mulher marchava porta fora com o estômago enganado por uma bucha de pão seco, entalado por um chá de cidreira, e juntava-se à turba humana que ia saindo dos prédios vizinhos e lhe faziam companhia silenciosa, só interrompida pelas saudações da praxe. Com as mãos enfiadas nos bolsos e as golas levantadas ao vento cortante que zurzia as orelhas e a dignidade, aquela multidão ia engrossando ao mesmo tempo que as distancias das fábricas iam encurtando, depois desfaziam-se cada um seguindo caminho para a fábrica de destino.

Depois o Manuel e os companheiros entravam nas secções barulhentas de máquinas em movimento cadente e monótono num “trum-trum, trum-trum” que ecoava no cérebro desde que se lembrava ainda miúdo quando acompanhava o pai as primeiras vezes para aprender o oficio.

O Manuel não conheceu a internet, só a conheceu de ouvir falar. O Manuel não conheceu os netos exaurido por uma vida sem sentido. O Manuel não amou, casou porque era tradição. O Manuel não deixou herança, tem uma lápide com o nome gravado numa placa de granito polido. O Manuel não tem idade, tem os anos que os filhos de lembram: “uns sessenta e tais”! O Manuel não sabe se foi infeliz, simplesmente porque nunca conheceu a felicidade. O Manuel não viveu, viu viver no caminho que fazia de casa para a fábrica e vice-versa.

O sol sempre nasceu para o Manuel pelas frestas da janela. Ainda lhe incomodam o sono com outros “truns-truns” sempre que vem um outro Manuel para o seu lado e lhe cerram o caixão ali perto.

O Manuel podia ser o José ou o António, mas era o Manuel porque a lápide assim diz.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Igreja ferida de morte

Não sou muito de modas, nem sequer de correntes quer de opinião quer de qualquer outra coisa como aquelas parvoíces que de vez em quando me caem na caixa de email para enviar para mais não sei quantos incluído para a pessoa que enviou, normalmente com imagens ridículas de Cristo ou um outro qualquer símbolo religioso, chego a sentir pena de quem acredita nisso. Devem acreditar caso contrário porque me mandariam? Não sou nem nunca fui seguidista, porque entendo que há sempre uma reserva de opinião própria sobre tudo e sobre todos, e uma história e sua veracidade e até o seu desenlace dependem muito de quem a conta.
Quando miúdo era muito crente, acreditava piamente na religião e nos seus insondáveis dogmas, começou essa crença a esbater-se com a leitura e conhecimento e com a negação de que a própria igreja estabelece naquilo que lhe serve de suporte à sua fé. De coisas que devem ser interpretadas literalmente e outras que devem servir de meios de comparação conforme as necessidades que a própria igreja confere em função do tempo que vive e das justificações que necessita para os sortilégios que fabrica e esconde a seu bel-prazer. Aqui há uns tempos um bispo brasileiro cometeu o pecado (para mim não deixa de o ser) de roubar a uma criança de 9 anos a crença em que foi educada porque essa criança foi violada e como praticou aborto de uma gravidez produto desse acto foi unilateralmente excomungada com o beneplácito do Vaticano. Esse mesmo Vaticano que é governado por uma sinistra personagem que enquanto dirigiu a Congregação da Fé no episcopado de João Paulo II se achou no direito de escamotear crimes ao nível do mais horrendo que podem ser praticados pelo ser humano, propondo até em alguns casos a reintegração dos causídicos nas mesmas paróquias em que os factos foram conhecidos. Desde que começaram a ser conhecidos os casos de Boston, seguiu-se a Irlanda, e agora também do continente africano chegam-nos ecos desses abusos perpetrados sobre os pobres entre os pobres.
Fui educado num colégio interno, vulgo seminário, durante um período da minha vida, facto que já relatei em algumas crónicas de índole intimista e auto-biográfico. Nunca fui assediado pessoalmente a nível sexual mas fui várias vezes espancado por simples notas menos boas, ou por falar para o lado na sala de estudo. Lembro-me da alimentação frugal que nos era servida e de um miúdo que ficou com as mãos inchadas da palmatória com que foi castigado por ter pegado em mais de um pão. Lembro-me dos nomes de (quase) todos os padres que cometiam esses abusos físicos no seminário menor de Braga conhecido como “a tamanca”. Lembro-me que a cultura do castigo físico era o principal meio de educação nesse sítio tenebroso em meados dos anos 80. Lembro-me que à boca pequena se falava deste ou daquele padre que gostava de passar pelas casas de banho de manhã quando fazíamos as abluções diárias. Lembro-me do emérito Bispo D. Eurico falar em disciplina no sermão de boas vindas (estranhamente era assim que lhe chamavam) aos novos garotos que arribavam ali com cara de assustados cujo choro ecoava nos vastos dormitórios. Lembro-me que éramos crianças simples e crentes, lembro-me que nos roubavam essa fé à chibatada que zurzia inclemente na barriga das pernas deixando marcas durante semanas. Na altura eu não percebia nada, hoje ecoa-me em comparação as memórias do Marquês de Sade. E nem sequer se pode dizer que eram uns poucos como querem agora fazer crer, era a própria cultura de todo um ensino, de toda uma diocese que o Sr. Bispo se encarregava de abençoar.

domingo, 11 de abril de 2010

Barco de papel


A folha em branco à minha frente
é todo um mar de sugestões,
longe de ser vazia
é o verde-esmeralda do mar
que te enovela os cabelos,
branca sim,
a cor leitosa da tua pele
que me embriaga o tacto.
Translúcida a imagem
que me perpassa do teu olhar
e se esbate no meu
nas íris que perscruto
em busca não sei de quê
mas que tu me descobres
no brilho que lhes imprimes.
É de papel o barco que sou
nas flutuações do teu sentir,
vogo ao sabor do teu querer.
Como rasgar a minha folha
ainda que em branco permaneça?

domingo, 7 de março de 2010

Improvisos na praia do Tamariz


Sopra-me no rosto a brisa amena
Que deposita nos meus lábios um sabor salgado
E nos olhos promessas de infinito.
O mar que me vem beijar os pés
Numa corrente translúcida
Devolve-me a ternura de tempos
Que julgo ter passado,
Que julgo ter provado,
Algures entre a realidade e o sonho
E adivinho já aí,
No revolver de cada onda
Que me renova a promessa
Do desejo temperador.
Fica a espuma a espraiar-se
Preguiçosa e dolente
Numa comodidade aconchegante.
Já não tenho saudade,
Só o desejo que a próxima onde me agite de novo.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Esqueleto à beira mar plantado


Degolam a palavra,
Pelo simples e egoísta acto de matar,
Idiotas inúteis
Ocos entre o parietal e o frontal,
Corre-lhes nas artérias exangues
Um pútrido líquido que esparramado pelo nasal
Contamina suínos à peste humana.
Admiram a unha tratada na ponta da falange,
Raspam o sabugo,
Engordurado pelos que rompem a cervical
A engordar-lhes os fígados hepáticos.
Longas vidas têm as bestas
Que da ciática se livram
À custa de quem rompe as rotulas
A encerar-lhes o lídimo piso
Onde assentam as plantas
Que lhes suportam os cuneiformes.
Debitam diarreias para audiência
De campânula em riste
Ignara dos riscos que os tímpanos sofrem
Ao oferecer a tuba auditiva aos rectos falantes.
Abanam as clavículas em jeito contristado e pesaroso
As pobres audiências
Que lhes sufragaram o direito de perdigotar aleivosias,
Continuando a romper falanges
Nas plainas alisantes da madeira
Onde sentam o sacro cu.
Despontam como papoilas na primavera
Os gordos asnos sufragados
Para um povo que lhes merece o peso,
Que pela força não os desencadeira
E por uma cruz os legitima.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Primavera do céu


Para onde vais andorinha
De asa ao vento assim cansada?
Vais para longe, vens de longe
Sempre em busca da alvorada

Que te acolha e te sossegue
Esse quebradiço voar
Num golpe de asa sem fim
Que vem lá de lá do mar.

Se eu pudesse mãe coragem
Substituía-me às monções
Fazia-te um ninho no meu peito
Que te abrigasse todas as estações

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Entre mim e eu


Encostado no corrimão
da minha paciência
sustenho o ar num acervo de agonia
no passo que me recuso a dar
ao degrau seguinte,
preso por uma linha imaginária
que se prende entre o ascendente
e o descendente
nunca sei qual o degrau que piso,
não sei se subo,
se desço,
se fico,
se vou…
abro a gaveta da memória,
aquela bafienta
onde arrumo o que não gosto
e num pressuposto absoluto de limpeza
sopro o pó remanescente
que emerge no ar
e aproveito para enfiar na narina,
na tentativa de me etilizar
no estado sereno da insensibilidade necessária
para abordar o que ali arrumei,
de tempos que não quero recordar,
aos quais não quero voltar.
Estufo o peito num abafado de vinha de alhos
e dou o passo na direcção do degrau
que se precipita no abismo
que me atormenta os sonhos de quando em vez,
caio…
caio…
E o fundo nunca aparece…
Sempre a cair,
numa queda sem fim,
acordo nesse terror
de uma queda abrupta no infinito
e alvoraçado como um bote de borracha que se esbate com as marés,
rompo a quilha na aresta de rocha
e vagueio no ar feito balão
que se esvazia e vai batendo pelas esquinas
até cair inerte no chão do meu desolamento.
Nesse acordar
onde não distingo a razão da minha insanidade
as pálpebras recusam-se a abrir,
o corpo não me obedece,
sei que acordei,
mas o meu corpo não sabe,
como companhia tenho o silencio
e a negritude a que o meu corpo me condena
na insanável recusa de olhar.
Já não sou rio que rompe margens,
não sou mar de águas amenas que te vai beijar,
sou assim uma espécie de regato
que se estiola nos rigores do estio
e mirra seco nas brechas das montanhas que me emparedam.
Vejo-me agora de cima com um sorriso cínico,

eu vejo mas o meu corpo não sabe

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Sensações


Volta sensação minha
Toma-me no sal do teu ventre
Agora…
Que os lábios e a pele recordam
As maresias de encanto
No desabrochar do Maio
O desejo púrpura da saudade
Brisa amena que me vem beijar
Agora…
Que a memória do corpo desperta
Vem, toma-me, agora
Que as mãos sentem
Como se tocassem de novo.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Memórias /rimas tradicionais do Minho


Não corre água no regato
Mirraram as flores no canteiro
Não há mais cor no meu céu
Embrutecido entre o nevoeiro

Desce o pranto da saudade
Rouba-me o tempo de te amar
Cada minuto que passa
É ampulheta a virar

Subi o escadario do bom Jesus
Fiz novena à Senhora das Dores
Fiz promessa aos Santos Passos
Nada aclamou os meus ardores

Secaram as mimosas nos meus olhos
Acinzentou o verde do meu Minho
Já não vejo o teu sorriso
Que me punha assim sem tino

Resta-me a memória dos teus gorjeios
Da gargalhada, que me provocava o riso
Tua pele morena e trigueira
Teus lábios que me tiravam o siso

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Masturbação


Há dias que me sinto assim, enroscado…
O corpo arqueia-se num gemido interno sem que eu queria, sem me obedecer as mãos procuram, tacteiam no vazio, cruzo-as de encontro ao peito, e deixo que as pálpebras se cerrem, onde concentrado no som do silencio que me invade enceto a busca pelo universo da minha cama vazia, mesmo sabendo que não te encontro ali. Procuro-te entre lençóis de cio que me aconchegam a saudade mas não mitigam a tua falta. Deixo que a luz ondulada entre as persianas da janela me lembrem o raiar do teu sorriso, que esse lusco-fusco me traga a carícia do teu cabelo solto que me vem lamber a pele quando te debruças sobre mim.
A minha cama é agora um universo, um paroxismo matizado de sol e suor, declaro guerra á lua, afundo o rosto na almofada dos teus seios, tuas nádegas redondas a colcha perfumada em lavanda colhida nos mais puros regatos, em cujo trinar descubro o gemido que me soltas quando te arqueias de encontro a mim, teu ventre pulsante e pungente, ávido e oferecido na penumbra do desejo.
És sal és água, esporeada nos flancos és égua em disparada nas margens do meu leito, teus lábios carmim pulsam a cada arremetida do cerne da nossa luta, meu desejo sempre inacabado, meu desejo sempre adiado…penetro-te a noite, busco a alvorada.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Diz-me


Encosta a boca ao meu ouvido
Diz-me por onde andas,
O que tens feito,
Nem tanto para saber
Mais para sentir
O teu hálito quente,
Saborear o som da tua voz,
Cava no meu ouvido.
Fecho os olhos e quase a sinto,
Trinar de saudade
Num crepúsculo sem fim
Nesse soar sem tino
Que se perde
Na memória dos dias que passo sem ti.

Encosta a boca ao meu ouvido,
Fala-me das paragens
Por onde andas ausente de mim,
Vestida de mim
Num abraço sem fim,
Fecho os olhos e quase te vejo,
Olhos de corça,
Lábios de mel,
Minha terra prometida
Onde apascento o meu desejo,
Assim só de te imaginar…

Vem…
Encosta a boca ao meu ouvido…

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Bocas


Devassa intima que me escorres
Em boca despudorada
Da língua que te escorre
Num passo que me descompassa.
Colírio da minh’alma,
Clítoris aguçado,
Tremente…
Espera…
Solicito…
Túrgido…
Satisfeito, enfim…
Num revés de posição
Vara de sensações
Em ponta de língua inflamada
No membro flamejante
Que colérico descarrega
Boca que traga
Sorve…
Lambe…
Acaricia…
Engole…
Rápida súplica orgástica.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

De mim e de outras mulheres VI




Apareceu do nada no hall do andar, carregado de sacos plásticos, barba por fazer hirsuta e esbranquiçada, olhos claros com um olhar negro cor da pele, as calças eram farrapos que mal lhe tapavam o esqueleto e as partes pudibundas, um casaco amarrotado cuja cor já não se distinguia, calçado trazia a planta do pé rugosa e poeirenta. Os outros miúdos arrancaram a correr e a gritar abandonando o jogo do botão que originava acaloradas discussões quando pedia meças a palmo, eu continuei ali de joelhos boquiaberto, não de terror como os outros mas sim de surpresa pelo homem da triste figura que se me deparava.
Caminhou diante de mim, como se me perpassasse sem olhar para mim, imune e ignorando o estupor que ostentava. Ao longo da varanda corrida que servia os apartamentos e cujas portas estavam abertas a triste figura a todas bateu sem alma e sem esperança, como um autómato, arrastando os pés num passo vagaroso e alquebrado.
Pedia esmola ou algo para comer ou até mesmo algo velho que pudesse depois vender ou trocar, eu seguia-o silencioso um ou dois passos atrás. Uma vizinha deu-lhe um espelho e despachou-o:
- Agora põe-te a andar daqui que não se suporta o cheiro – disse em voz severa e ríspida. Era a ultima casa, ele deu meia volta e recomeçou aquele compasso olhando e admirando o espelho, de repente este caiu no chão forrado de azulejos estilhaçando-se em vários pedaços, o homem olhou os pedaços incrédulo ajoelhou-se e começou a recolher os pedaços em movimentos maquinais, eu ajoelhei-me também incapaz de ignorar o sofrimento que se sentia no rosto hirto e ossudo.
O homem pegou num dos pedaços e reflectiu-se nele o rosto, ele olhou-se no fragmento do espelho, as lágrimas explodiram-lhe nas íris, lamentando não se sabe o quê, se o espelho partido, se o fragmento de vida que lhe viu estampado.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Seara de Maio


Céu recortado no horizonte
Pela planície folheada a ouro
Trigo de seara que não colhi
Nesse olhar meu eterno tesouro

Lá até onde alcança a vista
Perdida em azuis de marés
De um céu sem nuvens
Sem um chão para poisar os pés

Vislumbro fragmentos de mim
Ventos no rosto que me sabem a ti
Seara de Maio semeada assim
Como um rio que em mim flui

Não correm rios no teu chão
Nas marés de ouro debruado
Da mais pura filigrana recortada
De um beijo em ti repousado

Anoitece na tua seara
Entardeço nessa espera desmedida
De um dia, queiram o céu e as estrelas
Em que te afundas como que despida

Fazer-te galáxia de mil sóis
Em brilhos orgásticos de sol poente
Na tarde em que te anoiteço
Fazer-te madrugada de sol nascente

domingo, 31 de janeiro de 2010

De mim e de outras mulheres V


O edifício era alto, muito alto para a idade que tinha, aquela idade em que tudo e todos nos parecem grandes, lembro-me de olhar para gente cuja altura hoje suplanto e achá-los altos. O edifício era um caso assim, mas só tinha 2 andares, 3 se contarmos o rés do chão mas parecia-me um arranha céus comparado com a pequenez em que me senti ao ver o meu pai e o meu tio desaparecerem por trás da grande porta de carvalho maciço que se fechou num ranger de dobradiças doídas pela ferrugem e pelos anos, dando os ferrolhos de ferro fundido que imediatamente a cerraram o ultimo toque na triste sinfonia do pior ano da minha vida, que adivinhei logo ali.
Além de alto o edifício era enorme com longos corredores forrados em soalho de madeira oca que davam um estranho soar a cada passo, os tectos enormes eram a razão de ser tão alto e só ter 2 andares. Fui conduzido por um padre de batina preta e cara de poucos amigos aos dormitórios para depositar a minha bagagem e fazer a minha cama. Estreei uns lençóis amarelos com umas flores castanhas ainda embalados num saco plástico, estiquei um cobertor e coloquei a colcha da cama que me tinham dado igual a todas as outras, as camas era separadas umas pelas outras pela medida de uma mesa de cabeceira que não ultrapassava os 30-40 cms, a cabeceira da minha cama era delimitada pela cabeceira do colega da cama que se seguia, estava rodeado de camas, nunca tinha visto tantas camas, um mar de camas…E eu tão pequeno ali no meio…
- Já acabaste? – A voz autoritária do padre com andar de ganso retirou-me dos meus pensamentos insignificantes. Respondi-lhe que sim e ele mandou-me apressar para acorrermos à capela que iria começar a eucaristia, que nesse dia seria celebrada pelo Emérito Bispo D. Eurico para dar as boas vindas ao novo ano lectivo. Lá fui atrás do padre até à enorme capela onde estariam umas 400 crianças como eu, uns mais velhos, outros mais novos mas todos dentro da mesma faixa etária. Por trás do altar destaco o enorme crucifixo pendurado do tecto como que vigiando cada um de nós num misto de terror e de respeito. O emérito bispo lá descarregou a ladainha da missa, num ritual em que se lhe notava o enfado tal como em quase todas as missas a que se assiste, o padre parece sempre muito aborrecido por ter de estar ali e não faz a mínima tentativa de o disfarçar.
No fim da missa fomos avisados para não sairmos do nosso lugar, iria ter lugar uma explicação prévia de algumas regras que os novos elementos deviam seguir, sabia eu já na altura que há lei da bofetada e da chibatada, que o meu colega do lado no banco corrido da igreja me foi segredando á medida que a missa ia decorrendo.
O padre Borges, reitor do seminário deu uma breve introdução da vida que nos esperava recheada de regras e leis absurdas e preconceituosas, o termos que andar sempre em fila indiana, não podermos andar de mãos nos bolsos, (parece que tinham medo que tocássemos as partes), não podermos ler livros que não fossem religiosos e mesmo esses só os constantes da biblioteca posta ao nosso dispor, o só podermos tomar banho às quartas e sábados pese embora o facto de sermos obrigados a jogar bola no recreio que se seguiria ao almoço já que éramos proibidos de jogar jogos a dois ou conversar ou outra qualquer actividade lúdica que não fosse o futebol e o volei, ficando eu a pensar onde iam meter 400 crianças a jogar num campo de vólei e 4 campos de futebol.
Depois do vasto rol de regras e quejandos seguia-se a hora de jantar. Fomos mandados já em fila indiana para o refeitório, onde ficamos de pé alinhados em mesas de 6 lugares com tampos de mármore debruado a carvalho e bancos corridos. Só nos foi dada autorização para sentar depois de um pai-nosso rezado a preceito e devido sinal da cruz feito a correr tal a fome. Fome essa que desapareceu à vista das travessas com massa cotovelo envolta numas couves em cujo caldo devem ter cozido uma carne para dar sabor mas encarregarem-se de a retirar previamente. Comemos a frugal refeição atamancada com um pão recesso, só um, porque só tínhamos direito a um pão. No fim do jantar fomos para o enorme salão de estudo onde devíamos dispor o material escolar. Quando ficou tudo arrumado, rezamos o terço, e fomos de novo dispostos em fila indiana para seguirmos para os dormitórios. Duas ou três filas á minha frente um dos garotos foi apanhado pelo Padre António Luís a brincar, prontamente metido na ordem com uma chibatada rápida e vigorosa a varar as orelhas frias que feria o corpo e o orgulho e devia dar alguma satisfação sádica ao padre pela frequência com que a utilizava.
Nos dormitórios tínhamos sido avisados para não tirarmos as roupas sem que as luzes estivessem desligadas, eles tinham medo que nos excitássemos com a visão mútua dos nossos corpos em cuecas.
Já com os pijamas vestidos e de dentes lavados, rezamos as orações da noite ali mesmo de pé junto à cama.
A luz foi apagada, o silêncio atingiu-me como uma bofetada, magoando-me o orgulho como aquela chibatada tinha magoado o colega há pouco. No meio da penumbra ouvia-se o ranger dos beliches dos miúdos que se viravam numa tentativa de conciliar o sono, um ou outro soluço de algum mais mimalho que sentiu falta do beijo reconfortante da mãe, do afago de testa do pai. O fragmento de saudade ganhou corpo em mim, lembrei a canção do Carlos do Carmo, naquela voz aconchegante: “parecem bandos de pardais, á solta, os putos…” Lembrei o pardal que tentei domesticar e que se recusou a comer até cair e o encontrar morto no chão da gaiola, numa ponta de angustia e remorso pensei na razão que me levou a não abrir a porta da gaiola ao pardal, tão bonito! O mais bonito que vi…

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

De mim e de outras mulheres IV


Tínhamos 3 anos, eu magro e ossudo o cabelo cortado em forma de tigela ao “estilo Beatle” como se dizia na altura, ela tinha aquele ar bonito a que não era alheio um estilo gorduchinho que as meninas nessa idade ostentam e lhes dá aquele ar trigueiro e roliço, característico da mulher minhota embora ainda fosse menina.
Eu cheguei numa tarde Verão vindo não se sabe de onde para ocupar um apartamento que o meu pai tinha alugado naquele bloco estranho. Nunca tinha visto uma casa assim, em cima de outras casas à qual só se chegava subindo longos lances de escadas e sem um quintal. Fui logo conhecer os vizinhos e dei de caras com um senhor que se prontificou a ser meu tio para sempre já que eu achava que não tinha família suficiente, ficou a ser o meu tio Lino e por inerência a esposa ficou a tia Fatinha. Ainda hoje são meus tios. Andava numa lufa-lufa escada acima, escada abaixo a ajudar nas mudanças e dei de caras com a Maria do bloco ao lado, da minha idade, da minha altura, num vestido singelo de algodão acima do joelho que naqueles tempos andavam sempre sujos por força dos jogos na terra. Olhou-me num ar tímido por debaixo da repa de cabelo que lhe cobria a testa, eu dei-lhe um sorriso e ela devolveu-mo:
- Como te chamas? – Perguntou-me
- Zé Alberto, e tu? – Retorqui numa voz sumida
- Eu sou a Maria, moro no prédio do lado, vieste morar para aqui? E onde moravas? Quem são os teus pais? Olha, sabes brincar ao eixo? E à macaca, sabes? Podemos brincar os dois se quiseres, sempre que quiseres. Tens algum elástico? Também gosto de jogar ao elástico mas eu não tenho nenhum, roubei um à minha mãe e ela bateu-me. A tua mãe bate-te se lhe fores buscar um elástico?
A Maria ficou assim a metralhar palavras umas atrás de outras e eu a olhar para ela embevecido, esqueci-me das mudanças e fui jogar não me lembro o quê, mas sei que apanhei a primeira surra na nova casa nesse mesmo dia por descurar os meus deveres de ajuda nas lides da mudança, nesse tempo a colher de pau tocava afinada e na falta dela o chinelo sempre à mão de semear ou da perna que estivesse mais a jeito.
Era a minha companhia de todos os dias, palradeira e risonha, atrevida e gaiata, mesmo quando não queria a companhia dela a Maria impunha-se não ligando aos meus ralhetes de que ela era menina e não tinha nada que andar sempre atrás de mim, que fosse brincar às casinhas com as outras meninas, mas ela não ia, queria sempre ficar comigo, então eu sentava-me na berma do passeio com os cotovelos apoiados nos joelhos, as palmas da mão suportando o queixo, ela sentava-se ao meu lado, na mesma posição, encostava a anca à minha, procurava sempre assim um contacto físico, eu coçava o nariz esticando um dedo, e ela fazia o mesmo, levantava o sobrolho e ela fazia o mesmo, esticava uma perna, ela esticava a dela, começando a dar ares de gozo travestido por um sorriso inocente, eu dava-lhe uma cotovelada, ela devolvia e desatava a correr a rir e eu atrás dela a rir também e a chamar-lhe nomes que se chamava na altura entre miúdos. Hoje acho que ainda ecoam esses risos nos penedos dos montes que se avistavam na altura e que agora a construção desenfreada se encarregou de encobrir e até destruir.
Aos 5 anos subitamente fui para Angola com a família, ficamos anos sem nos vermos. Quando voltei numa tarde de verão também, para a mesma casa cujo aluguer o meu pai nunca cancelou, estava a olhar a fachada do prédio tentando refrescar a minha memória quando senti uma presença ao lado, uma mão que pegava a minha, e me disse “olá”, desta vez não falou como da outra, deitou o olhar tímido ao chão sempre a segurar-me a mão, parecia que vestia o mesmo vestido desta vez às flores sob um fundo azul-marinho, sem alças, onde despontava já um pequeno decote,um cabelo liso, quase negro ao longo das costas e os olhos… Os olhos tinham aquela indefinição entre o castanho e o negro emoldurados por umas pestanas longas e espessas. Eu disse “olá” também e pensei na quão mentirosa era a afirmação de que o amor juvenil é uma ilusão. Ficamos assim calados de mão dada, anca com anca sentados na berma do passeio.

domingo, 24 de janeiro de 2010

De mim e de outras mulheres III


No nosso prédio, o nº 75, haviam 6 apartamentos, em todos eles haviam garotos excepto num, no r/c direito. O prédio tinha 2 andares, sem elevador, num estilo de habitação social, destinado aos trabalhadores têxteis das grandes fábricas do Sr. Conde.
Causou estranheza aos putos do prédio os novos vizinhos que chegaram para ocupar o r/c direito, um casal de septuagenários já cansados das lides e da vida que naquele tempo era dura. A nossa relação inicial foi má, nós éramos os donos do prédio e bem cedo e em algazarra fazíamos questão de anunciar isso aos 4 ventos, em correrias desenfreadas e em apostas malucas de quem conseguiria saltar determinado nº de degraus de uma só vez sem partir uma gâmbia. O espalhafato era invariavelmente muito, o barulho ensurdecedor, mas só incomodávamos os “velhos” do r/c direito porque eram os únicos que não abalavam para as tecelagens e tinturarias ao primeiro raiar da alvorada. Um dia a Dona Joaquina não se veio queixar do barulho de vassoura em punho pronta a debandar quem se aproximasse ao alcance da piassaba, estranhamos essa ausência que era já parte da nossa brincadeira e apostas, “a quem é que a Quininha ia acertar hoje?”. O mistério foi revelado quando o carro do Dr. Machado parou em frente ao bloco, sob o nosso olhar atento por trás das colunas que decoravam os patamares das escadas. Passados 5 minutos chegou a ambulância e saiu o Sr. Luís de maca com a Quininha chorosa atrás amaldiçoando a vida e bendizendo a Sta Rita, que lhe salvasse o Luís dela.
Passadas umas semanas, o Sr. Luís voltou, mas já não era o mesmo de voz tonitruante, e corpo feito de peito aberto, era um Sr. Luís débil com uma muleta e passou a ocupar uma cadeira de lona, à porta do prédio por onde espreitava a vida a passar-lhe à frente numa lentidão que até ali desconhecia, passavam a vida, os dias, os meses e os garotos em repelão em correria sem fim que quase lhe derrubava a cadeira, e lhe esticava o dedo médio quando ele resmungava impropérios contra nós. Ás vezes ele fazia queixa de mim à minha mãe e trabalhava a colher de pau nesses fins de tarde, logo vingado no dia seguinte, em que me punha do alto da minha varanda que se precipitava directamente sobre ele e destilava-lhe os meus interstícios líquidos, que tocados a vento lhe pareciam chuva e o levava a berrar para a mulher:
- Ó Quina, apanha a roupa que vai chover, já me caíram aqui uns pingos. E eu lá em cima ria-me com escárnio do velho que via a vida sentado numa cadeira de lona.
Depois fui crescendo e o velho ia-me vendo as borbulhas no rosto e perguntava-me em tom de gozo se andava a dar muitas marteladas no corpo. Assistia com alguma inveja à passagem das minhas namoradas e amigas que iam lá a casa “para estudar e fazer trabalhos de grupo” como dizia à minha mãe. Um dia a Quininha avisou a minha mãe que ás vezes haviam umas brincadeiras impróprias para um prédio de famílias, e foi logo prontamente repreendida pelo Velho Luís que “o rapaz é novo e precisa de se fazer homem”. Começou a partir daí a haver uma cumplicidade entre mim e o Velho Luís. Chegava do liceu e sentava-me na berma da tampa de esgoto onde ele assentava a cadeira e ficávamos ali a conversar, sobre a vida dele, sobre a minha e ás vezes até sobre nada, falávamos só e ficamos amigos, tão amigos como podem ser um octogenário e um garoto de 16 anos com a mania que era homem. Eu sentia-me bem porque o Velho Luís olhava para mim assim, como homem e acho hoje que ele foi o primeiro a ver um homem em mim, primeiro até do que eu próprio. Talvez porque o meu naco de vida que me passou como um relâmpago a ele passou-lhe em câmara lenta e apercebeu-se primeiro que eu já era um homem.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Há tanto tempo que não canto o mar


Há tanto tempo que não canto o mar,
Não me recorda o teu olhar sereno
O crepitar da maré contra a areia
Nas vagas do teu corpo ameno

Há tanto tempo que não canto o mar
Não me recorda o teu liso cabelo
As ondas de espuma vagarosas
Que acercas ao meu corpo sem apelo

Há tanto tempo que não canto o mar
Não me recordam os teus seios perfumados
As dunas da mais bela praia
O cheiro do sal por todos os lados

Há tanto tempo que não canto o mar
Não me recorda o teu húmido ventre
Tempestades de vagas alterosas
Sagas e fábulas de amor ardente

Há tanto tempo que não canto o mar
No lusco-fusco da madrugada
Nessa hora dormente e amena
Em que queres ser encontrada

Há tanto tempo que não canto o mar
Nesse cantar de sereia em que encantas
Nesse torpor de esquecer, tudo.
Vestir a saudade do cheiro que espantas

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Duas irmãs à conversa


Numa madrugada igual a qualquer outra não interessa se de frio, se de calor, na azáfama de que ninguém se dá conta àquelas horas a palavra escrita foi projectada num embrulho de um furgão de distribuição pelas livrarias e quiosques. A palavra era a Verdade, escrita por alguém que ainda se importava com a sua importância, caiu a pobre Verdade no meio de outros embrulhos de outras publicações, como quem choca na virtualidade com um qualquer blog ou site de referência. Olhou para o lado e viu outras palavras como ela, muitas, escritas com igual desvelo como ela, outras nem por isso, outras ainda que eram a própria vergonha da Palavra, mãe da Verdade e das outras palavras todas é certo, mas quem não tem filhos dos quais não se orgulhe?
A Verdade reparou na Hipocrisia mesmo ao seu lado escrita numa revista do social, travestida de piedade:
- Que fazes aí Hipocrisia, minha irmã?
- Olha, ganho a vida como tu, tenho tanto direito em aqui estar como tu ó Verdade -respondeu cínica a Hipocrisia.
- Não achas que te expões demais, que cais no ridículo com essas tuas lágrimas de crocodilo só para pareceres que és muito sensível, que és muito amiga? - Retorquiu-lhe a Verdade tentando aconselhar a hipocrisia a mudar de atitude.
- Olha lá ó Verdadinha e se te fosses meter na tua vida ou ainda te solto aqui as minhas amigas que caem já em cima de ti, já sabes como elas te mordem comigo, não sabes? Vens agora armar, bem viste o que fiz à Liberdade, à Caridade, à Solidariedade, ao Amor, ao Carinho, à Ternura, ou já te esqueceste? Porta-te mas é bem se queres continuar a ser publicada, como vês nesses jornalecos á tua volta já ninguém fala dos teus amigos, portanto comporta-te ou chamo a Ira, a Inveja, a Usura, a Falsidade, a Vaidade, a Usurpação e todas essas minhas amigas e derrotamos-te sua convencida e olha que somos muitas, podes chamar quem quiser, e agora deixa-me…
A Verdade calou-se assim amordaçada, recolheu-se á sua insignificância, numa manhã que bem podia ser de frio intenso ouvindo a Hipocrisia com todas as colegas a carpir mágoas pelo desterro e pelas vitimas do Haiti.