quinta-feira, 23 de julho de 2009

Mushimá uêlê


Vou cumprir a promessa que te fiz
Ainda pequenino e de malas aviadas
De um dia te voltar a abraçar,
Renovar as esperanças entretanto goradas

Trazia nos olhos a espuma das cataratas,
Kwanza em queda abrupta na Duque de Bragança
Nas narinas o cheiro do capim do Cacuaco
E a velha estrada do Caxito, ainda na lembrança.

O velho embondeiro que servia de forte
Estará ainda lá orgulhoso e altaneiro?
Será ainda a testemunha silenciosa
Da flor que lhe roubei prazenteiro?

Para colocar nas missangas às cores
Que adornavam as tranças
Finas e meticulosas da namorada
Morena, que decorava as minhas lembranças.

Quero percorrer os teus caminhos,
Aferir do quanto envelhecemos
Longe um do outro, mas porém perto
Porque juntos esse caminho percorremos

Dir-te-ei da saudade, dir-me-ás das dores
Que entretanto sofreste, espúria e esventrada
Afagarei o teu chão, sorrirei ao teu povo
Dar-te-ei a mão, quando olhar a velha estrada

Lá longe, sem fim à vista, como o amor que te tenho.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Um boneco sem braço


Rumo sem destino e sem dono
Sem pai, nem mãe que me aconchegue
Não tive em menino o xaile da avozinha
A fartura nunca é prato que me chegue

Morro em cada olhar de comiseração
Para reviver sem motivo aparente
Em qualquer esquina do descontentamento
Prenha de tráfego e gente que me passa rente

Tenho como amigos caixotes de lixo
Onde busco restos de felicidade,
Às vezes, um carrinho sem rodas
Rouba-me à minha realidade

Um barco sem velas, boneca de trapos,
Caderno velho, um lápis partido
Ou até quem sabe, e se deus quiser
Um hambúrguer meio mordido

Uma bola furada, lego desemparelhado
Rádio sem pilhas, boneco sem braço,
Faço dele o menino que sonho ser
Envolvo-o num terno abraço

sexta-feira, 17 de julho de 2009

No meu livro de português


Guardo a tua foto, pequenina
Entre páginas gastas pelo dedilhar
Do meu livro de português
Junto à pétala que se recusa a murchar

No canto da página tem uma marca
Para encontrar sempre o teu sorriso
O vinco que lhe fiz, marca-me a alma
E encontro-te sempre que preciso

Está na página dos advérbios de modo
Para eternizar o amor, simplesmente
Como se fosse nosso o tempo
Enganando a ausência sempre presente

Como presente é o teu sorriso
Que ecoa assim sempre no meu ser
Na marca que fiz na página da vida
No momento que entraste no meu viver

quinta-feira, 9 de julho de 2009

ensaio sobre "o comer"


Já corri toda a Europa, mesmo a antiga com fronteiras que já não existem e outras que entretanto foram construídas, percorri o norte de África, conheci ainda em miúdo a África austral. Da Ásia conheço o que Istambul me deixou ver, serei sempre reconhecido ao povo turco por isso, pelos sorrisos de orelha a orelha com que me convidavam a partilhar as frugais refeições comidas em comunidade onde todos mergulhavam a mão direita para se alimentarem (a mão esquerda é falta de educação e desrespeitosa para com o sagrado oficio de comer). Acompanhavam a refeição com um chá quente e amargo feito em infusão seguindo os trâmites do sagrado Corão.
“O comer” como sói dizer-se em Portugal, é não só para nós como para quase todo o mundo antigo com tradições seculares uma arte. E não há povo como o português para classificar esse nobre acto (o de comer) como arte. Herdeiros de costumes latinos fazemos da mesa a nossa religião e ainda que façam a pé o caminho mais longo até Fátima, o farnel não pode faltar. Mas é de pés debaixo da mesa que esse culto é mais aprofundado. O pão não pode faltar, de milho de centeio, de trigo, não importa desde que não seja aquela coisa insípida de pão integral, tem é que ser encorpado e é a primeira coisa a ir para a mesa. Isso e o vinho a preceito servido de preferência em canecas profusas em quantidade. Se houverem umas azeitonas para acompanhar o pão, tanto melhor, se salgadas bem, é uma maravilha porque empurra a pinga. E começa-se assim por dar o primeiro aconchego a um estômago fustigado por uma fome de meia dúzia de horas, desde o pequeno-almoço, imaginem (!) que não se comia nada! Mas isso é frugal para quem passou tal penitência e ainda tem que esperar pela cozinheira azafamada na cozinha por isso o melhor é vir, só para abrir o apetite, uma alheira ou vá lá uns pezinhos de coentrada. O vinho assim vem em catadupa para sorver as gorduras, e deita mais pão que bem preciso é para chupar o vinho. E eis que o dono do tasco se lembra de colocar um presunto fatiado com um bocadinho de melão. O melão aqui tem o efeito de ser só “para desenjoar”. Finalmente vem a vedeta, que é o prato propriamente dito, pode ser um cabrito no forno, uma xanfana de cabra velha, um bacalhau á lagareiro ou até uma massa á lavrador, tudo caminha empurrado por uns bons copaços (ou malgas) de vinho. É a hora da felicidade suprema do português. É aqui que ele dá azo á fama de “bom garfo”, é aí que se diz que ele tem a “bicha solitária”, se for realmente um fora de série nessa arte diz-se até que ele “come como um abade” vá-se lá saber porquê. Findo o prato principal, pergunta-se se há uma sopinha, “para assentar” diz-se. Se for com feijão, couve e no meio vier uma tora (pedaço de toucinho cozido na sopa) isso é uma dádiva dos deuses e torna-a tão apetecida como o Ronaldo em pleno Santiago Barnabéu. E finalmente e só porque sobra vinho precisa de vir uma “lambeta” que é como quem diz uma sobremesa, chama-se assim porque é sobre a mesa que a queremos, doce, apelativa e carregada de açucares e outras coisas que tais que nos leva a gabar o nosso índice de colesterol a quem quiser ouvir. E finalmente vem mais uma vez, só “para desenjoar” a travessa da fruta “da época”, madura e suculenta e como o vinho já se acabou e a fruta está tão boa e pede mais uma pinga, venha de lá mais uma garrafa. Acabada a fruta fica-se a bebericar o vinho que restou, se não sobrou manda-se vir mais porque sabe bem ficar a saborear o vinho enquanto se fuma um cigarro e se conta umas anedotas badalhocas. Fumados os cigarros e bebido mais uma garrafosa de vinho é hora do cafezinho, curto e forte para alçar o palato a uma bagaceira de truz vinda lá daquele lavrador que todos conhecem, é “para deslaçar”, faz bem ao coração e á digestão. E fica-se então a bebericar findo o café mais uns quantos bagaços enquanto o índice de badalhoquice das anedotas sobe de tom.
O repasto está feito, hora de combinar um lanchezinho lá para o meio da tarde, só para conversar um pouco e provar aquele chouriço caseiro que saiu do fumeiro ainda a semana passada.
Ora digam lá se isto não é um povo de poetas?

quarta-feira, 8 de julho de 2009

poema sem pontuação, nas margens do perfeito.

Eu quero o poema perfeito,
O poema declamado de rua em rua
Nas vielas e ruas escuras
Nos salões e palacetes
Quero-o até nas casas de putas
Onde o verbo no infinito
Rima com a palavra foder
Eu quero um poema sem rimas
Sem margens e marginalizado
Que cante o amor clandestino
A liberdade de boca em boca
Quero-o na boca da parteira
Que desentranha a vida
Na boca do coveiro
Que a entranha na terra escura
Eu quero um poema sem vírgulas
Nem pontos finais quero-o…
Porque sim…
Quero-o na mão que estende a esmola
E na mão que a recebe
A generosidade da palavra
No palato da sopa dos pobres
Quero o poema na chama da lareira
Quero-o no zurzir do vento norte
Quero-o no estupor da criança
De esperança estropiada
De arma á bandoleira
Quero o poema perfeito
Arma de sempre
Em desenhos de cavernas
Porque em cada linha
Ainda que corrida
Eu leio o poema da vida
Umas vezes triste, outras alegre
Mas o poema perfeito
É a alma que se desenha
E em cada alma escriturada
Sou eu que renasço
No prazer de a descobrir

terça-feira, 7 de julho de 2009

crónica sobre a condição feminina


O Sr. José era velho, tão velho que na aldeia ninguém se lembrava dele novo, como seria o seu falar ainda de rapaz ou a voz grossa de homem feito. Na tasca da aldeia onde os homens rompiam as falanges nos balcões de mármore no tamborilar impaciente da chegada de mais uma pinga dizia-se que ele devia ter mais de cem anos mas ninguém lhe dava mais de 50 e picos, 60 e coisa, 70 e tal. Uma indefinição que a jorna da terra lhe sulcava no corpo alquebrado, nos pés de galinha profundos em volta dos olhos, os rasgos no canto da boca que lhe afilavam os lábios já de si finos, e uma testa que parecia percorrida por um arado.
O Sr. José ia casar finalmente com a Zulmira, mulher recatada e trabalhadeira, filha mais nova de um grupo de 15 irmãos e que tinha ficado na casa materna até que o Senhor chamara a mãe para a última morada cumprindo assim a tradição de cuidar dos velhos pais até ao último suspiro. A Zulmira fizera também ela essa dobra na idade em que já não se consegue definir os anos que lhe passaram nas vértebras doidas da espinha dobrada no manejo da enxada. Com a morte da mãe a sua única fortuna era a vaca galega cuja afeição a tinha impedido de a mandar para o matadouro quando os úberes secaram e as forças lhe faltaram para aguentar com o cabresto e puxar o arado e ficou assim a modos que o animal de estimação da Zulmira.
O casamento foi motivo de galhofa e enriqueceu o anedotário da taberna, com piadas que punham em dúvida a virilidade do Sr. José e a capacidade que teria em meter dentro os tampos tão antigos da Zulmira, que todos juravam ceguinhos ela ainda teria por via da sua feiura que afugentara sempre os mais corajosos e afoitos. Por sua vez o Sr. José gozava da fama de mulherengo apesar da idade e contava-se à boca pequena as suas viagens à cidade grande onde gastaria o pequeno pecúlio arrecadado nos negócios fortuitos da venda de gado.
O Sr. José era homem à antiga, que se fazia respeitar e a Zulmira mesmo casada com ele continuava a tratá-lo por Sr. José e dedicava-lhe o mesmo esmero e atenção que dedicou á mãe até à hora da morte. O Sr. José no fim do almoço ia para baixo da vinha no fundo do quintal gozando a sombra prazenteira com uma vasilha de tremoços e azeitonas, um pedaço de broa e uma enfusa de vinho, a qual quando acabava o fazia dar altos berros à Zulmira
- Ó mulher enche-me a enfusa…- e lá vinha a Zulmira quintal abaixo buscar a enfusa vazia, subia o quintal, ia à adega enchia a enfusa, descia novamente o quintal deixava a enfusa ao Sr. José e subia de novo o quintal para continuar os afazeres. O Sr. José era cioso do aprumo do quintal:
- Ó mulher, é preciso podar a pereira.
-Ó mulher, é preciso capar os tomates
- Ó mulher, a alface precisa de ser colhida para ir para a feira.
E a Zulmira lá ia no seu vagar sem nunca reclamar acedendo às ordens do Sr. José.
Um dia na volta de uma das suas misteriosas viagens o Sr. José trazia no alvo colarinho uma mancha suspeita. A Zulmira indagou-o da proveniência de tão indigna nódoa.
- É sabão da barba…- respondeu o Sr. José.
- Não pode ser Sr. José, isso parece aqueles “pozes” que as mulheres finas usam – respondeu a Zulmira numa voz segura e firme que surpreendeu até ao Sr. josé.
- É sabão da barba, é sabão da barba e não se fala mais nisso. – Vociferou o Sr. José num tom de voz que não permitia réplicas. A Zulmira calou-se numa fúria que nunca tinha sentido, a vaca galega afinou a longa orelha percebendo os humores da dona. O Sr José tirou o laço, pegou na enfusa e dirigiu-se para o fundo da vinha seguido pela vaca galega. A Zulmira tinha feito á força de enxada um rego para conduzir as águas da fossa para o batatal enquanto o Sr. José estava fora, este não contando com o fundo rego caiu de frente no rego afundando o corpo em meio metro de águas pútridas e fedidas ricas em húmus para s terras, a vaca Zulmira inadvertidamente colocou-lhe a pata por cima da cabeça parando o andar lento e o olhar no fundo do quintal, abanando a cauda sobre o lombo para enxotar a mosca. A Zulmira estranhando a duração da enfusa que já devia ter esgotado foi quintal abaixo e encontrou o Sr. José afundado na merda e no mijo, já sem respirar, molhado e inerte, a vaca galega mugiu a finados…
Os anos passaram-se e a Zulmira ficou dona das extensas terras do sr. José, as estradas já estavam alcatroadas, o lar de idosos da aldeia já tinha sido fundado.
Ia pela estrada até ao cemitério decorar a campa dos seus pais e do seu Sr. José, à vinda perguntavam-lhe:
- Ó Zulmira, porque não vais para o lar, ao menos lá tinhas companhia, alguém cuidava de ti…
- Eu cá “num” preciso disso, tenho a minha galega que já me faz companhia que chegue – e continuava o seu passo quebradiço apoiado já por um cajado na berma da estrada coma galega a ladeá-la protegendo-a dos incautos motoqueiros e motoristas que aproveitavam o asfalto da estrada para se finarem nas bermas. A galega era a rocha em que contra tudo se desfazia.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

És Minha


Ilha, promontório, península
Escarpa frondosa no oceano
Declive, fundura, abismo
Vento de frente, suave abano

Rua escura, viela estreita
Granito que resiste ao tempo
Deserto o caminho, silêncio
Batido pelo vento.

Alma minha perdida
Que na mão me vieste poisar
Sei que agora de mim
Nunca mais te vais apartar

És minha, como a claridade
Pertence ao sol
Com a força do canto da manhã
Entoado pelo rouxinol

Podes da escarpa
Cair ao mar
Pode a rua
Não ir a nenhum lugar

Mas o teu amor
Esse, morre-me na palma
Da mão, renasce em mim
Sentido único da minha alma