quinta-feira, 9 de julho de 2009

ensaio sobre "o comer"


Já corri toda a Europa, mesmo a antiga com fronteiras que já não existem e outras que entretanto foram construídas, percorri o norte de África, conheci ainda em miúdo a África austral. Da Ásia conheço o que Istambul me deixou ver, serei sempre reconhecido ao povo turco por isso, pelos sorrisos de orelha a orelha com que me convidavam a partilhar as frugais refeições comidas em comunidade onde todos mergulhavam a mão direita para se alimentarem (a mão esquerda é falta de educação e desrespeitosa para com o sagrado oficio de comer). Acompanhavam a refeição com um chá quente e amargo feito em infusão seguindo os trâmites do sagrado Corão.
“O comer” como sói dizer-se em Portugal, é não só para nós como para quase todo o mundo antigo com tradições seculares uma arte. E não há povo como o português para classificar esse nobre acto (o de comer) como arte. Herdeiros de costumes latinos fazemos da mesa a nossa religião e ainda que façam a pé o caminho mais longo até Fátima, o farnel não pode faltar. Mas é de pés debaixo da mesa que esse culto é mais aprofundado. O pão não pode faltar, de milho de centeio, de trigo, não importa desde que não seja aquela coisa insípida de pão integral, tem é que ser encorpado e é a primeira coisa a ir para a mesa. Isso e o vinho a preceito servido de preferência em canecas profusas em quantidade. Se houverem umas azeitonas para acompanhar o pão, tanto melhor, se salgadas bem, é uma maravilha porque empurra a pinga. E começa-se assim por dar o primeiro aconchego a um estômago fustigado por uma fome de meia dúzia de horas, desde o pequeno-almoço, imaginem (!) que não se comia nada! Mas isso é frugal para quem passou tal penitência e ainda tem que esperar pela cozinheira azafamada na cozinha por isso o melhor é vir, só para abrir o apetite, uma alheira ou vá lá uns pezinhos de coentrada. O vinho assim vem em catadupa para sorver as gorduras, e deita mais pão que bem preciso é para chupar o vinho. E eis que o dono do tasco se lembra de colocar um presunto fatiado com um bocadinho de melão. O melão aqui tem o efeito de ser só “para desenjoar”. Finalmente vem a vedeta, que é o prato propriamente dito, pode ser um cabrito no forno, uma xanfana de cabra velha, um bacalhau á lagareiro ou até uma massa á lavrador, tudo caminha empurrado por uns bons copaços (ou malgas) de vinho. É a hora da felicidade suprema do português. É aqui que ele dá azo á fama de “bom garfo”, é aí que se diz que ele tem a “bicha solitária”, se for realmente um fora de série nessa arte diz-se até que ele “come como um abade” vá-se lá saber porquê. Findo o prato principal, pergunta-se se há uma sopinha, “para assentar” diz-se. Se for com feijão, couve e no meio vier uma tora (pedaço de toucinho cozido na sopa) isso é uma dádiva dos deuses e torna-a tão apetecida como o Ronaldo em pleno Santiago Barnabéu. E finalmente e só porque sobra vinho precisa de vir uma “lambeta” que é como quem diz uma sobremesa, chama-se assim porque é sobre a mesa que a queremos, doce, apelativa e carregada de açucares e outras coisas que tais que nos leva a gabar o nosso índice de colesterol a quem quiser ouvir. E finalmente vem mais uma vez, só “para desenjoar” a travessa da fruta “da época”, madura e suculenta e como o vinho já se acabou e a fruta está tão boa e pede mais uma pinga, venha de lá mais uma garrafa. Acabada a fruta fica-se a bebericar o vinho que restou, se não sobrou manda-se vir mais porque sabe bem ficar a saborear o vinho enquanto se fuma um cigarro e se conta umas anedotas badalhocas. Fumados os cigarros e bebido mais uma garrafosa de vinho é hora do cafezinho, curto e forte para alçar o palato a uma bagaceira de truz vinda lá daquele lavrador que todos conhecem, é “para deslaçar”, faz bem ao coração e á digestão. E fica-se então a bebericar findo o café mais uns quantos bagaços enquanto o índice de badalhoquice das anedotas sobe de tom.
O repasto está feito, hora de combinar um lanchezinho lá para o meio da tarde, só para conversar um pouco e provar aquele chouriço caseiro que saiu do fumeiro ainda a semana passada.
Ora digam lá se isto não é um povo de poetas?

1 comentário:

  1. Jaber
    Tens aqui um cantinho todo catita e ainda por cima com o melhor da tua escrita!

    Pena que não seja muito visitado...
    Mas para isso todos nós sabemos que é preciso andar por aí mais ou menos como os políticos em campanha eleitoral.

    Só um pequeno reparo, tens o player muito largo e está a sobrepor-se num dos teus textos.
    Há uns mais pequeninos por aí...

    Beijo

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