domingo, 31 de janeiro de 2010

De mim e de outras mulheres V


O edifício era alto, muito alto para a idade que tinha, aquela idade em que tudo e todos nos parecem grandes, lembro-me de olhar para gente cuja altura hoje suplanto e achá-los altos. O edifício era um caso assim, mas só tinha 2 andares, 3 se contarmos o rés do chão mas parecia-me um arranha céus comparado com a pequenez em que me senti ao ver o meu pai e o meu tio desaparecerem por trás da grande porta de carvalho maciço que se fechou num ranger de dobradiças doídas pela ferrugem e pelos anos, dando os ferrolhos de ferro fundido que imediatamente a cerraram o ultimo toque na triste sinfonia do pior ano da minha vida, que adivinhei logo ali.
Além de alto o edifício era enorme com longos corredores forrados em soalho de madeira oca que davam um estranho soar a cada passo, os tectos enormes eram a razão de ser tão alto e só ter 2 andares. Fui conduzido por um padre de batina preta e cara de poucos amigos aos dormitórios para depositar a minha bagagem e fazer a minha cama. Estreei uns lençóis amarelos com umas flores castanhas ainda embalados num saco plástico, estiquei um cobertor e coloquei a colcha da cama que me tinham dado igual a todas as outras, as camas era separadas umas pelas outras pela medida de uma mesa de cabeceira que não ultrapassava os 30-40 cms, a cabeceira da minha cama era delimitada pela cabeceira do colega da cama que se seguia, estava rodeado de camas, nunca tinha visto tantas camas, um mar de camas…E eu tão pequeno ali no meio…
- Já acabaste? – A voz autoritária do padre com andar de ganso retirou-me dos meus pensamentos insignificantes. Respondi-lhe que sim e ele mandou-me apressar para acorrermos à capela que iria começar a eucaristia, que nesse dia seria celebrada pelo Emérito Bispo D. Eurico para dar as boas vindas ao novo ano lectivo. Lá fui atrás do padre até à enorme capela onde estariam umas 400 crianças como eu, uns mais velhos, outros mais novos mas todos dentro da mesma faixa etária. Por trás do altar destaco o enorme crucifixo pendurado do tecto como que vigiando cada um de nós num misto de terror e de respeito. O emérito bispo lá descarregou a ladainha da missa, num ritual em que se lhe notava o enfado tal como em quase todas as missas a que se assiste, o padre parece sempre muito aborrecido por ter de estar ali e não faz a mínima tentativa de o disfarçar.
No fim da missa fomos avisados para não sairmos do nosso lugar, iria ter lugar uma explicação prévia de algumas regras que os novos elementos deviam seguir, sabia eu já na altura que há lei da bofetada e da chibatada, que o meu colega do lado no banco corrido da igreja me foi segredando á medida que a missa ia decorrendo.
O padre Borges, reitor do seminário deu uma breve introdução da vida que nos esperava recheada de regras e leis absurdas e preconceituosas, o termos que andar sempre em fila indiana, não podermos andar de mãos nos bolsos, (parece que tinham medo que tocássemos as partes), não podermos ler livros que não fossem religiosos e mesmo esses só os constantes da biblioteca posta ao nosso dispor, o só podermos tomar banho às quartas e sábados pese embora o facto de sermos obrigados a jogar bola no recreio que se seguiria ao almoço já que éramos proibidos de jogar jogos a dois ou conversar ou outra qualquer actividade lúdica que não fosse o futebol e o volei, ficando eu a pensar onde iam meter 400 crianças a jogar num campo de vólei e 4 campos de futebol.
Depois do vasto rol de regras e quejandos seguia-se a hora de jantar. Fomos mandados já em fila indiana para o refeitório, onde ficamos de pé alinhados em mesas de 6 lugares com tampos de mármore debruado a carvalho e bancos corridos. Só nos foi dada autorização para sentar depois de um pai-nosso rezado a preceito e devido sinal da cruz feito a correr tal a fome. Fome essa que desapareceu à vista das travessas com massa cotovelo envolta numas couves em cujo caldo devem ter cozido uma carne para dar sabor mas encarregarem-se de a retirar previamente. Comemos a frugal refeição atamancada com um pão recesso, só um, porque só tínhamos direito a um pão. No fim do jantar fomos para o enorme salão de estudo onde devíamos dispor o material escolar. Quando ficou tudo arrumado, rezamos o terço, e fomos de novo dispostos em fila indiana para seguirmos para os dormitórios. Duas ou três filas á minha frente um dos garotos foi apanhado pelo Padre António Luís a brincar, prontamente metido na ordem com uma chibatada rápida e vigorosa a varar as orelhas frias que feria o corpo e o orgulho e devia dar alguma satisfação sádica ao padre pela frequência com que a utilizava.
Nos dormitórios tínhamos sido avisados para não tirarmos as roupas sem que as luzes estivessem desligadas, eles tinham medo que nos excitássemos com a visão mútua dos nossos corpos em cuecas.
Já com os pijamas vestidos e de dentes lavados, rezamos as orações da noite ali mesmo de pé junto à cama.
A luz foi apagada, o silêncio atingiu-me como uma bofetada, magoando-me o orgulho como aquela chibatada tinha magoado o colega há pouco. No meio da penumbra ouvia-se o ranger dos beliches dos miúdos que se viravam numa tentativa de conciliar o sono, um ou outro soluço de algum mais mimalho que sentiu falta do beijo reconfortante da mãe, do afago de testa do pai. O fragmento de saudade ganhou corpo em mim, lembrei a canção do Carlos do Carmo, naquela voz aconchegante: “parecem bandos de pardais, á solta, os putos…” Lembrei o pardal que tentei domesticar e que se recusou a comer até cair e o encontrar morto no chão da gaiola, numa ponta de angustia e remorso pensei na razão que me levou a não abrir a porta da gaiola ao pardal, tão bonito! O mais bonito que vi…

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

De mim e de outras mulheres IV


Tínhamos 3 anos, eu magro e ossudo o cabelo cortado em forma de tigela ao “estilo Beatle” como se dizia na altura, ela tinha aquele ar bonito a que não era alheio um estilo gorduchinho que as meninas nessa idade ostentam e lhes dá aquele ar trigueiro e roliço, característico da mulher minhota embora ainda fosse menina.
Eu cheguei numa tarde Verão vindo não se sabe de onde para ocupar um apartamento que o meu pai tinha alugado naquele bloco estranho. Nunca tinha visto uma casa assim, em cima de outras casas à qual só se chegava subindo longos lances de escadas e sem um quintal. Fui logo conhecer os vizinhos e dei de caras com um senhor que se prontificou a ser meu tio para sempre já que eu achava que não tinha família suficiente, ficou a ser o meu tio Lino e por inerência a esposa ficou a tia Fatinha. Ainda hoje são meus tios. Andava numa lufa-lufa escada acima, escada abaixo a ajudar nas mudanças e dei de caras com a Maria do bloco ao lado, da minha idade, da minha altura, num vestido singelo de algodão acima do joelho que naqueles tempos andavam sempre sujos por força dos jogos na terra. Olhou-me num ar tímido por debaixo da repa de cabelo que lhe cobria a testa, eu dei-lhe um sorriso e ela devolveu-mo:
- Como te chamas? – Perguntou-me
- Zé Alberto, e tu? – Retorqui numa voz sumida
- Eu sou a Maria, moro no prédio do lado, vieste morar para aqui? E onde moravas? Quem são os teus pais? Olha, sabes brincar ao eixo? E à macaca, sabes? Podemos brincar os dois se quiseres, sempre que quiseres. Tens algum elástico? Também gosto de jogar ao elástico mas eu não tenho nenhum, roubei um à minha mãe e ela bateu-me. A tua mãe bate-te se lhe fores buscar um elástico?
A Maria ficou assim a metralhar palavras umas atrás de outras e eu a olhar para ela embevecido, esqueci-me das mudanças e fui jogar não me lembro o quê, mas sei que apanhei a primeira surra na nova casa nesse mesmo dia por descurar os meus deveres de ajuda nas lides da mudança, nesse tempo a colher de pau tocava afinada e na falta dela o chinelo sempre à mão de semear ou da perna que estivesse mais a jeito.
Era a minha companhia de todos os dias, palradeira e risonha, atrevida e gaiata, mesmo quando não queria a companhia dela a Maria impunha-se não ligando aos meus ralhetes de que ela era menina e não tinha nada que andar sempre atrás de mim, que fosse brincar às casinhas com as outras meninas, mas ela não ia, queria sempre ficar comigo, então eu sentava-me na berma do passeio com os cotovelos apoiados nos joelhos, as palmas da mão suportando o queixo, ela sentava-se ao meu lado, na mesma posição, encostava a anca à minha, procurava sempre assim um contacto físico, eu coçava o nariz esticando um dedo, e ela fazia o mesmo, levantava o sobrolho e ela fazia o mesmo, esticava uma perna, ela esticava a dela, começando a dar ares de gozo travestido por um sorriso inocente, eu dava-lhe uma cotovelada, ela devolvia e desatava a correr a rir e eu atrás dela a rir também e a chamar-lhe nomes que se chamava na altura entre miúdos. Hoje acho que ainda ecoam esses risos nos penedos dos montes que se avistavam na altura e que agora a construção desenfreada se encarregou de encobrir e até destruir.
Aos 5 anos subitamente fui para Angola com a família, ficamos anos sem nos vermos. Quando voltei numa tarde de verão também, para a mesma casa cujo aluguer o meu pai nunca cancelou, estava a olhar a fachada do prédio tentando refrescar a minha memória quando senti uma presença ao lado, uma mão que pegava a minha, e me disse “olá”, desta vez não falou como da outra, deitou o olhar tímido ao chão sempre a segurar-me a mão, parecia que vestia o mesmo vestido desta vez às flores sob um fundo azul-marinho, sem alças, onde despontava já um pequeno decote,um cabelo liso, quase negro ao longo das costas e os olhos… Os olhos tinham aquela indefinição entre o castanho e o negro emoldurados por umas pestanas longas e espessas. Eu disse “olá” também e pensei na quão mentirosa era a afirmação de que o amor juvenil é uma ilusão. Ficamos assim calados de mão dada, anca com anca sentados na berma do passeio.

domingo, 24 de janeiro de 2010

De mim e de outras mulheres III


No nosso prédio, o nº 75, haviam 6 apartamentos, em todos eles haviam garotos excepto num, no r/c direito. O prédio tinha 2 andares, sem elevador, num estilo de habitação social, destinado aos trabalhadores têxteis das grandes fábricas do Sr. Conde.
Causou estranheza aos putos do prédio os novos vizinhos que chegaram para ocupar o r/c direito, um casal de septuagenários já cansados das lides e da vida que naquele tempo era dura. A nossa relação inicial foi má, nós éramos os donos do prédio e bem cedo e em algazarra fazíamos questão de anunciar isso aos 4 ventos, em correrias desenfreadas e em apostas malucas de quem conseguiria saltar determinado nº de degraus de uma só vez sem partir uma gâmbia. O espalhafato era invariavelmente muito, o barulho ensurdecedor, mas só incomodávamos os “velhos” do r/c direito porque eram os únicos que não abalavam para as tecelagens e tinturarias ao primeiro raiar da alvorada. Um dia a Dona Joaquina não se veio queixar do barulho de vassoura em punho pronta a debandar quem se aproximasse ao alcance da piassaba, estranhamos essa ausência que era já parte da nossa brincadeira e apostas, “a quem é que a Quininha ia acertar hoje?”. O mistério foi revelado quando o carro do Dr. Machado parou em frente ao bloco, sob o nosso olhar atento por trás das colunas que decoravam os patamares das escadas. Passados 5 minutos chegou a ambulância e saiu o Sr. Luís de maca com a Quininha chorosa atrás amaldiçoando a vida e bendizendo a Sta Rita, que lhe salvasse o Luís dela.
Passadas umas semanas, o Sr. Luís voltou, mas já não era o mesmo de voz tonitruante, e corpo feito de peito aberto, era um Sr. Luís débil com uma muleta e passou a ocupar uma cadeira de lona, à porta do prédio por onde espreitava a vida a passar-lhe à frente numa lentidão que até ali desconhecia, passavam a vida, os dias, os meses e os garotos em repelão em correria sem fim que quase lhe derrubava a cadeira, e lhe esticava o dedo médio quando ele resmungava impropérios contra nós. Ás vezes ele fazia queixa de mim à minha mãe e trabalhava a colher de pau nesses fins de tarde, logo vingado no dia seguinte, em que me punha do alto da minha varanda que se precipitava directamente sobre ele e destilava-lhe os meus interstícios líquidos, que tocados a vento lhe pareciam chuva e o levava a berrar para a mulher:
- Ó Quina, apanha a roupa que vai chover, já me caíram aqui uns pingos. E eu lá em cima ria-me com escárnio do velho que via a vida sentado numa cadeira de lona.
Depois fui crescendo e o velho ia-me vendo as borbulhas no rosto e perguntava-me em tom de gozo se andava a dar muitas marteladas no corpo. Assistia com alguma inveja à passagem das minhas namoradas e amigas que iam lá a casa “para estudar e fazer trabalhos de grupo” como dizia à minha mãe. Um dia a Quininha avisou a minha mãe que ás vezes haviam umas brincadeiras impróprias para um prédio de famílias, e foi logo prontamente repreendida pelo Velho Luís que “o rapaz é novo e precisa de se fazer homem”. Começou a partir daí a haver uma cumplicidade entre mim e o Velho Luís. Chegava do liceu e sentava-me na berma da tampa de esgoto onde ele assentava a cadeira e ficávamos ali a conversar, sobre a vida dele, sobre a minha e ás vezes até sobre nada, falávamos só e ficamos amigos, tão amigos como podem ser um octogenário e um garoto de 16 anos com a mania que era homem. Eu sentia-me bem porque o Velho Luís olhava para mim assim, como homem e acho hoje que ele foi o primeiro a ver um homem em mim, primeiro até do que eu próprio. Talvez porque o meu naco de vida que me passou como um relâmpago a ele passou-lhe em câmara lenta e apercebeu-se primeiro que eu já era um homem.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Há tanto tempo que não canto o mar


Há tanto tempo que não canto o mar,
Não me recorda o teu olhar sereno
O crepitar da maré contra a areia
Nas vagas do teu corpo ameno

Há tanto tempo que não canto o mar
Não me recorda o teu liso cabelo
As ondas de espuma vagarosas
Que acercas ao meu corpo sem apelo

Há tanto tempo que não canto o mar
Não me recordam os teus seios perfumados
As dunas da mais bela praia
O cheiro do sal por todos os lados

Há tanto tempo que não canto o mar
Não me recorda o teu húmido ventre
Tempestades de vagas alterosas
Sagas e fábulas de amor ardente

Há tanto tempo que não canto o mar
No lusco-fusco da madrugada
Nessa hora dormente e amena
Em que queres ser encontrada

Há tanto tempo que não canto o mar
Nesse cantar de sereia em que encantas
Nesse torpor de esquecer, tudo.
Vestir a saudade do cheiro que espantas

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Duas irmãs à conversa


Numa madrugada igual a qualquer outra não interessa se de frio, se de calor, na azáfama de que ninguém se dá conta àquelas horas a palavra escrita foi projectada num embrulho de um furgão de distribuição pelas livrarias e quiosques. A palavra era a Verdade, escrita por alguém que ainda se importava com a sua importância, caiu a pobre Verdade no meio de outros embrulhos de outras publicações, como quem choca na virtualidade com um qualquer blog ou site de referência. Olhou para o lado e viu outras palavras como ela, muitas, escritas com igual desvelo como ela, outras nem por isso, outras ainda que eram a própria vergonha da Palavra, mãe da Verdade e das outras palavras todas é certo, mas quem não tem filhos dos quais não se orgulhe?
A Verdade reparou na Hipocrisia mesmo ao seu lado escrita numa revista do social, travestida de piedade:
- Que fazes aí Hipocrisia, minha irmã?
- Olha, ganho a vida como tu, tenho tanto direito em aqui estar como tu ó Verdade -respondeu cínica a Hipocrisia.
- Não achas que te expões demais, que cais no ridículo com essas tuas lágrimas de crocodilo só para pareceres que és muito sensível, que és muito amiga? - Retorquiu-lhe a Verdade tentando aconselhar a hipocrisia a mudar de atitude.
- Olha lá ó Verdadinha e se te fosses meter na tua vida ou ainda te solto aqui as minhas amigas que caem já em cima de ti, já sabes como elas te mordem comigo, não sabes? Vens agora armar, bem viste o que fiz à Liberdade, à Caridade, à Solidariedade, ao Amor, ao Carinho, à Ternura, ou já te esqueceste? Porta-te mas é bem se queres continuar a ser publicada, como vês nesses jornalecos á tua volta já ninguém fala dos teus amigos, portanto comporta-te ou chamo a Ira, a Inveja, a Usura, a Falsidade, a Vaidade, a Usurpação e todas essas minhas amigas e derrotamos-te sua convencida e olha que somos muitas, podes chamar quem quiser, e agora deixa-me…
A Verdade calou-se assim amordaçada, recolheu-se á sua insignificância, numa manhã que bem podia ser de frio intenso ouvindo a Hipocrisia com todas as colegas a carpir mágoas pelo desterro e pelas vitimas do Haiti.