sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Vida Submersa


Em passo cadente silencioso, pela berma do caminho, caminhavam os dois, o pai com os olhos postos no chão, como que tentando encontrar algo ia observando a terra escura, com pequenas lascas de xisto aqui e ali tentando não os pisar que eram como lâminas nos pés descalços e doridos de mais uma jorna de trabalho. Lembrava-se de ter feito aquele mesmo caminho com o pai com a idade do filho que levava pela mão falar com o pai do Luisinho, agora Sr. Luís Almeida para pedir o mesmo que ele ia agora pedir. O Artur, seu filho não podia mais ir á escola, estava em idade de trabalhar que a Maria José estava já prenha de novo e era já o terceiro a caminho – como caralho é que ela se foi esquecer das contas? - Cogitava com os botões. – Òh home, foi deus que quis, que queres que faça? – Respondera-lhe a Maria José. Raios parta o Sôr Abade que lhes mete aquelas ideias na cabeça, que é pecado isto, é pecado aquilo… - Estugou o passo e disse ao rapaz – anda lá moço, não tarda nada é de noite e ainda temos que dar de comer á bicharada na volta -. O Artur apressou o passo na cadência imposta pelo pai, olhos postos no horizonte cujas ondas de calor enovelavam e o levavam a pensar que quando fosse grande iria ter um carro quando fosse preciso ir a casa do patrão, ou melhor nem ia precisar de ir a casa do patrão porque não ia precisar de trabalhar para ele como todos os da aldeia. Ia ter dinheiro para o carro, para os dentes do pai, para tratar aquela doença que a mãe anda a esconder do pai – dizes ao teu pai levas uma estalada que te parto os dentes – dissera-lhe a Maria José enquanto escarrava no lenço uma viscose de cor vermelha e o metia apressadamente na manga da camisa, a tuberculose é maleita do diabo, dizia-se. O Sôr Abade do alto do seu púlpito dizia que era uma doença enviada por deus para castigar aqueles que pecavam e cometiam o pecado da carne em desrespeito pelas indicações que o Santo Padre dava. E a Maria José não percebia, nunca tinha deixado o seu António usar aquelas modernices que se vendem nas farmácias da cidade, fizera sempre o k o Sôr Abade mandava e como é que Deus lhe mandara aquilo? O Artur corria agora atrás de um esquilo indiferente ás lâminas de xisto que lhe feriam os pés – Tu vais cair rapaz, aleijas-te e o Sr. Luís não te dá emprego, caralho… - Disse-lhe o pai. A casa apareceu de repente ao fim da curva do caminho, contornaram o alvo muro até encontrarem o portão onde desembocava a estrada de paralelo que vinha do centro da aldeia sempre desenhada por carvalhos frondosos que o Avô do Sr. Almeida já mandara plantar há quase 90 anos, para o proteger da canícula do verão nas suas idas e vindas de charrete. Mas agora haviam os automóveis e o do Sr. Almeida lá estava do outro lado do portão com o motorista a passar-lhe um pano. – Que queres daqui Tónio? Perguntou-lhe o motorista garboso no seu uniforme.– Vinha para falar com o Sr. Luís Almeida por causa aqui do moço, sabe como é, já ‘tá em idade…- Òh Idalina…vê se o Senhor pode atender aqui o Tónio da Zefa. Berrou o motorista para uma sopeira que passava apressadamente para o interior da casa com um cesto de roupa acabado de apanhar do varal.O Senhor assomou á entrada da casa, barriga proeminente, com as mãos nos suspensórios, um palito no canto da boca, um bigode farfalhudo com fios de bacalhau pendurados, lábios semi cerrados para dar a demonstrar que não gostava que lhe interrompessem a merenda, e logo agora que a punheta de bacalhau lhe estava a saber tão bem.– Que queres Tóino? O António tirou apressadamente o chapéu, olhou de soslaio para o Artur e deu-lhe um tabefe no cachaço que se apressou a fazer o mesmo- Era pa falar aqui do meu moço, Sr. Luís, o rapaz fez a terceira classe, e já vai sendo tempo de começar a trabalhar que eu cá também não aprendi a escrever e cá vou levando a vida. Ele é inteligente o moço, se calhar até nos escritórios da fábrica grande lhe podia fazer jeito.- Òh Tóino, de inteligentes aqui na terra já basto eu, ele que idade tem? - Desculpe Sr. Luís, não quis ofender o senhor, mas não se podia arranjar alguma coisita para ele? È que a minha Zefa, já, já t’aí a parir e dava jeito mais algum lá em casa. Só pa parteira o Sr Luís sabe como é…- Vós fodeis como coelhos, não tendes juízo é o que é – vociferou o Senhor – Chega cá moço, mete aqui as mãos entre as grades pa te ver. O Artur olhou para o pai que lhe fez um sinal de assentimento, chegou-se às grades do portão, e mostrou as mãos ao Senhor.- Amanhã, às seis da manhã levas o moço ao chefe de turno da fábrica e dizes que vais de meu mando, mas olha lá, o moço vai ter que fazer os dois turnos qu’é muito novo e não dá rendimento…Respondeu e virou costas ignorando os “obrigados” do António e os “Deus lhe pague”.O António fez o caminho de volta, lentamente, cara tisnada pelos fornos da fábrica de tijolos, pegou na mão de Artur, pequenina e franzina no meio da sua grossa e calejada, lembrou-se de quando na idade dele fazia o trabalho de cinzeiro na recolha do carvão k não ardia e era reutilizado para os fornos… O calor sufocante, o carvão incandescente que teimava em se colar ás maos, a chibata do chefe de turno…- Puta de vida.

O Velho velho


Em pontão de cais
O velho espreita o mar
Cara ao vento, cabelo ralo
De cor salgada, olhos de profundidade
Da morte que não dos peixes
Espeta o anzol do olhar
No horizonte de mar mal agradecido
Nesga de pão duro
Que os dentes já não mastigam
Mas que a mesa precisa
Vazia de pão, cheia de fomes
Cansadas de o ser, de crianças
Velhas como o velho
Que já nasceu velho.

E debruça mais um pouco
O olhar, o velho em busca
Que não de peixes
Fétidos e fedidos
Cheiro nojento que respira pelos ossos
Busca pão no anseio do milagre
Que aprendeu quando era criança velha,
Filho de um velho que nasceu velho

Este nosso chão


Numa noite destas, num tempo que não foi, mas podia ter sido pelo tanto que é desejado, vi teus olhos no quarto crescente dos meus desejos. Cada botão da tua blusa estrela cadente testemunha dos meus desejos, de lua cheia que descubro no despontar dos teus seios acariciados pela luz parda. O marulhar do rio ali ao pé, trouxe-me á mente colírios húmidos que senti nas pontas dos dedos na derradeira transgressão da última estrela que atingi. O teu corpo arqueante e arfante uiva entre ancas de encontro ao meu desejo entumecido a que te agarras na vontade de vislumbrar estrela polar em pálpebras cerradas. Tua língua procura a minha com a sede de um rio seco que corre ligeiro em direcção á foz…com sede de mar… que a tua vista já alcança nesse mutismo gemido que me sussurras quando desfloro o teu desejo á muito prometido. A madrugada já vai alta numa abóbada onde ecoam os teus gemidos, no silêncio que já não queres. Teu corpo curvado e complacente na ânsia do meu, faz de ti fêmea receptiva da minha oferta que queres não mais recusar. Cai a madrugada nesse pedaço de chão em que és minha, a lua como testemunha anuncia o sol da nossa existência…

retalhos de uma vida (retalho I: morte ao fim da tarde)


Puxou a cortina do banho para o lado, com uma mão no rosto a limpar os olhos tacteou com a outra á procura da toalha, encontrou-a, amarfanhou-a entre as mãos e mergulhou nela o rosto encontrando alivio para o leve ardôr que sentia nos olhos. Começou então o lento ritual de limpeza do corpo. A toalha, velha, de felpo áspero e seco ia sugando a água que lhe escorria profusa pelo corpo, esticou o braço esquerdo limpando em actos circulares do pulso ao sovaco, levantou a mama, invejosa da altivez da juventude, para limpar por baixo. Reparou na carne pendente do braço, numa espécie de músculo invertido, a segurar-se ao osso, meneou a cabeça, acto continuo passou a toalha para a outra mão repetindo a operação. Inclinou-se, estribou uma perna na borda da banheira limpando-a da mesma forma do calcanhar ao alto das coxas, viu o monte de vénus, generoso, pensou: "tenho que marcar hora na esteticista". Repetiu a operação com a outra perna, saiu da banheira, mirou-se ao espelho, enrolou a toalha no cabelo, prendendo-a no alto da cabeça. Já no quarto vestiu o robe... Abriu o cortinado da janela, mirou os prédios cinzentos, tristes, que a vista lhe oferecia: "na Quarteira é que era bom", tinha os prédios na mesma mas vislumbrava-se uma nesga de mar... e á noite a água fria e clara em luares de azuis. Tinha sido na última vez que fizera férias há 10 anos atrás, já grávida do Francisco, e ainda com a ilusão de felicidade eterna que os sorrisos do Artur lhe prometiam. O emprego de tecelã no 1º turno, o matraquear de teares, o algodão pairando no ar, asfixiante, os berros do encarregado lembrando o atraso da produção depressa lhe tiraram a doce ilusão que devia ser propriedade universal e imutável.Olhou para a foto do Artur na sua mesa de cabeceira, com aquele olhar emoldurado por uma melena oleosa, de matador, dizia ele nos tempos áureos, que ela nunca achou grande coisa, mas era um moço trabalhador e uma desculpa para escapar aos berros da mãe, á censura silenciosa do pai e aos ardores intimos que sentia, que quando aplacados, a consciência a fazia correr para o confessionário.Agora quando o Artur lhe diz: "Odete, chega aqui", a repulsa é imediata, entrega-se sem se dar, desejando que ele não tenha ido recentemente ás mulheres da boite para assim ser mais rápido: "porra, mas porque raio não se serve só delas?". Encaminhou-se para a sala e deu com os olhos nela, no chão: "como raio veio isto aqui parar?", pegou-lhe encaminhou-se para o quarto do filho, as meias pelo chão, as cuecas sujas esquecidas: "quantas vezes já lhe disse para meter a roupa suja no cesto?" A cama por fazer, a profusão de brinquedos em desalinho. Olhou-se novamente ao espelho, extenuada, deixou que o cansaço a invadisse, lhe tomasse conta do cérebro. Acariciou a coronha da pistola, desenhando-lhe os contornos, apertou firmemente enlaçando-a, colocando o dedo no gatilho como viu naquele filme, o "Dirty Harry"; "aii, como era o nome daquele actor? Não interessa! Agora não interessa mais... Cansada, sinto-me tão cansada".Com a pistola firme na mão direita, levantou-a, encostou o cano á têmpora. Lembrou-se do telefonema da professora do Francisco, a pedir-lhe para ir lá no dia seguinte: "já não sei o que lhe hei-de fazer", dissera. Se o Artur sabe desanca-o. "Mas não interessa, não interessa nada, 'tou tão derreada". Fez pressão na têmpora... O indicador direito pressionou um pouco o gatilho, lento mas firme: "o que tinha que fazer hoje á tarde? Tou tão cansada..." O cão da arma movimenta-se para trás com a pressão do gatilho. "Se ao menos aquela merda daquele encarregado parasse de ser nojento".O dedo pressionou mais um pouco o gatilho, o corpo retesou-se na expectativa, o cão da arma atingiu o ponto de não retorno... Ouviu-se um estalido sêco... Odete caiu desamparada para trás, com o choque contra a cama a toalha soltou-se, o cabelo caiu em desalinho sobre os lençois, num quadro quase bonito, o braço pendeu no bordo da cama, a pistola de plástico soltou-se da mão caindo no soalho de taco com um som ôco. Ficou assim de olhos fechados, morta, até o filho chegar da escola.

Meu poema amargo e doce


Tens travo de citrino,

Daqueles que provém

De árvores expostas ao sol,

Cujos raios amadurecem

O teu apetecido fruto,

Numa generosidade de mel

Que me escorre queixo abaixo

Quando te mordo um gomo.

És laranja amarga e doce,

Grande, polpuda, de casca fina.

És tangerina acabada de colher,

Poema á natureza que te fez assim,

Doce.

Minha laranja, meu poema

Que desfolho gomo a gomo

Na expectativa de em cada parte

Redescobrir tua doçura.

Inunda-me a boca e os sentidos

Minha laranja, meu poema…

Teu sumo adoça-me a boca

Teu poema dá-me a cor

De laranjais sem fim.

Como te quero minha laranja

Meu poema…

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Mulher


Queria-te nua e friorenta
aconchegada em zibelinas

queria-te...
e procuro-te

nos espaços vazios da minha cama,
lençóis de cio...

ao penetrar em ti
será a minha alma ao teu encontro

flôr orvalhada
que se abre para mim em manhãs de primavera

prenuncios orgásticos
de ardor e queixume

sonho-te assim...
MULHER

porque te quero e amo...
…tanto, tanto.

José Alberto Valente