quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Vestido de morte


Cai a noite na viela escura
Dorme ao relento
Desprotegido do vento
Sofre de doença sem cura

Veste-se de sujos trapos
Olhos sem altivez
A morte espera a sua vez
Acoitada entre os farrapos

Adia-lhe a hora da chegada
Com a sopa da misericórdia
Tece com a fome a rapsódia
De morte nunca lamentada

Vestido de perigo
Despido de orgulho
Em sono sem barulho
Deixem dormir o mendigo

Que de menino tem a graça
Mas não tem a condição
Só a densa subtracção
Da morte que o abraça

(schiuuuu)

Chama de menino


Rasguei o papel que me macera
Verti a tinta da caneta
Impregnei-me de mim
Daquele que me habita
Desliguei a tomada da consciência
Apaguei a chama
Já sem rastilho que a sustente
E é de mim que me impregno
Ao vislumbrar o breu que me envolve
Negro como a fuligem onde ardo
Ainda em brasa lenta.
Resquícios da chama que ardeu
Não arde mais a chama,
Trucidada no tempo
Abafada no peito.

O rapaz, o burro e o cachorro


Um certo dia o pobre rapazito
Levava o cachorro de estimação
Foi á mata buscar gravetos e lenha
Para carregar no seu velho burrito

Chegado no meio da mata
O menino exclamou:
- Vou-te carregar lenha no lombo
Até ficares com malapata

Ouvindo tal, diz o pobre jumento:
- Pois claro que carregas
Não te custa, nem às costas o levas
Sou o lombo do vosso sustento

Nunca o menino tinha visto tal
E ficou tão admirado que correu
Encosta abaixo fazer queixa ao pai
Do burro que como pessoa falava igual

O pai ficou deveras desconfiado
-deu-te agora para mentir?
Pergunta-lhe o pai, em voz grossa
Com a mentira já em ares de zangado

-é verdade que eu vi tudinho
Disse o cachorro ali presente
Em defesa do pobre menino.
Que já estava para retomar caminho.

-afinal o cão também fala
Dizem os dois em uníssono
Cheirando-lhes assim de repente
Ser dos animais uma cabala

O pai fica assim assustado
Ao machado e ao cão deita a mão
Ajeita-o em mira do cachaço
Para a lâmina do machado

- O Senhor por favor tenha cuidado
Que o cão tem ar feroz,
E pode-me num instante morder.
Replicou o medroso machado…

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

fiz um poema á saudade


Sinto a ausência que se me entranha,
Amor em tempo de espera,
União de almas que esperam para se amar.
Destino desenhado na quimera
Agridoce da memória,
Desdenhada e amada tantas vezes
Enfeitada pela saudade que te sinto.

liberdade suspirada


Certo dia um pobre camponês
Encontrou ali na vizinha floresta
Um ninho, feito de urze e giesta
Uma ave escolheu entre as três

Águia, filhote de ave altiva
No galinheiro a colocou
Com galinhas a misturou
À águia nascida sem alma cativa

Um dia chegou um naturalista
Que disse não ser aquilo uma galinha
Era uma águia, que peninha (!),
Disse em jeito de especialista

-uma galinha, é o que é
Que assim foi educada
Liberdade não lhe é dada.
Que a quero aqui ao pé.

-É uma águia que busca liberdade
Quer Abrir as asas lá no alto
Sobrevoando o vasto planalto,
Não a sua comida por caridade

-veja se ela voa - diz o lavrador
-Ao tempo que está presa
Não consegue com certeza.
Remata assim o agricultor

Não desiste o naturalista
De dar à ave a liberdade
Que anseia com naturalidade
E assim se faz alpinista

Foi com a águia monte acima
Com ganas de liberdade lhe dar
Enfim, feliz, fazê-la voar
É assim que do céu se aproxima

Abriu-lhe as asas lá no alto
Num grande voo se levantou
E a águia feliz abençoou
A liberdade em todo o planalto

Fábula tradicional


Menino pobre com a mãe vivia
Em casa sozinho esperava
Enquanto a mãe trabalhava
Fazendo sempre o que a mãe dizia:

-a estranhos não abras a porta
Meu filho dilecto do coração
Anda por aí muito ladrão
A quem o pobre não importa

Um triste dia em casa o menino,
Bateram-lhe á pequena porta
Feita de madeira escura e torta
Franqueou-lhes a entrada o pequenino

De bem lhe parecia a figura
Que do postigo vislumbrou
Mas que a casa lhe roubou
Em acto vil de má usura

A mãe a casa foi chamada
Para ver o triste estado
Do seu armário arrombado
E do seu dinheiro espoliada

Foi estrada abaixo a correr
A maldizer o mau ladrão
Que a roubou sem compaixão
Desejando vê-lo a morrer

-Fecha a porta, gritou ela
Vereda abaixo correndo
E na pressa não percebendo
Que não a ouvia á janela

O menino que desolado percebeu,
Para levar a maldita porta,
Pagou nela, não importa
E ladino atrás da mãe correu

Com porta às costas ambos correram
Desolados a mãe e o menino
Preocupada com seu pequenino
Sitio para a noite escolheram

Em árvore alta se abrigaram
Sentiam-se tristes e cansados
Encostaram-se assim fatigados
E assim juntos pernoitaram

Ouviram conversas em alta hora
De alguém que se acercava
Da árvore que os abrigava
-fica silencioso e quieto, agora

Disse a mãe ao seu menino
Que fica a ouvir curioso
Aquele sussurro ocioso
Reconhecendo o ladrão ladino

Dividiam os dois o produto
Do dia de roubo a sua safra
De tanta gente de bem, a lavra
Roubando a sopa e o conduto

Ouviam eles em frenesim
Aquele “para mim e para ti”
Dizia um “pataca a mim”
Dizia outro “pataca a ti”

-Atiro-lhes já com a porta?
Perguntou o menino ansioso.
Diz a mãe em segredo ocioso:
-atira-lhes, que não importa

Sentiram na cabeça os gatunos,
Malandros, feios e porcos
Por seguirem em caminhos tortos
Por serem fonte de infortúnios

Assim ficou a mãe e o menino
Com o dinheiro que era seu
E aquilo que lhes pareceu
Ser contrário de feio destino

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O fado da fonte


Ia ela todos os dias á fonte
Olhos fundos, pretos os cabelos
Que lhe caiam em suaves novelos
Á imaginação faziam a ponte

Faces trigueiras, descalços os pés
Atravessava o caminho até á fonte
Logo ali ao sopé do monte
- Tão linda, Maria que és

Dizia o pobre e enamorado João
Á menina que assim sem saber
Mesmo suja os montes percorrer
Lhe embriagava o triste coração

Todos os dias o João ficava
A espera de ver a suave visão
Que lhe atropelava a paixão
E na alma se lhe gravava

A Maria fazia-se despercebida
Alegre e cantante nada notava
Dos olhares que o João lhe deitava
Rogava á Senhora da Aparecida

Que todos os dias ele lá estivesse
De olhar manso e envergonhado
Coração triste e trespassado
E declaração sentida lhe fizesse

Um certo dia foi a Maria á fonte
Convicta que seu João a esperava
Só a fonte sozinha na tarde estava
Ele nesse dia não desceu o Monte

Chegara a Carta da triste chamada
Disseram depois á Triste Maria
Que perdeu assim toda a alegria
Da fonte em morna cantada

Veio depois a notícia fatal
Que má nova rápido augura
João morrera em lenta tortura
Lá por alturas do Natal

Morrera onde não é celebrado
Lá por África onde foi mandado
Em ventos de guerra esforçado
O pobre João Apaixonado

Secou a menina os olhos sem alegria
Secou também a cantante fonte
Mirrou a erva e a urze do Monte
Sem seu João, morreu a Maria


É hoje lembrado e recontado
O triste fado, dos apaixonados
Em amores e paixões levados
Repousam enfim lado a lado

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Os Meus Tesouros

O Zé na Neve
A Sami na neve

O Zé galhofeiro


O João Maroto










O Zé no museu do pão



Os dois pachocos








O João depois de brincar na terra, chateado por o pai o mandar tomar banho







Divertidos na Serra






Os pachocos na Covilhã











O Zé com ar de engatatão









O João pensativo











A familia Silva


Na grande família dos Silvas
A felicidade e alegria é geral
É todo o ano quadra do natal
Mesmo nas maiores chuvas

O pai, bêbado e folgazão
Bonacheirão, cornudo e feliz
Ao subsídio dá loas e bendiz
A barraca em rica condição

Dá sonoros peidos e arrotos
Para alegria de toda a prole
Á sua mulher de mamas em fole
Dá apalpadelas e piropos

O Faná é o seu rico filho
Herdeiro de toda a idiotice
Fosse uma pata que o parisse
Não seria menos maltrapilho

Assalta carros para sustento
Ainda recebe da segurança social
Não tivesse ele, esse elo parental
De integração dizem, para o jumento.

Tem nome de novela brasileira
A filha que se chama Vanessa
Mamas, que o olho atravessa
Boca farta em qualquer beira

Perde-se pelas esquinas afinal
Ar maroto e sempre prazenteiro
Muito dada, até ao padeiro
Também vive da segurança social

Falta a mãe, Rosa, de sua graça
Cu rotundo, oferecido e altaneiro
Paga dívidas ao tolo merceeiro
Que esquece tudo entre a sua pernaça

Sabe chorar como mais ninguém
Dá-se ares de mulher muito séria
Até dar aos outros, pena da miséria
Consegue viver do subsídio também

Vivem assim alegres e contentes
Lêem as revistas Caras e a Maria
Sempre em eterna alegria
Adoram os Malucos do riso e batanetes

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Confluências


Tem aqui onde moro dois rios

Gosto de pensar que são meus

Corrente em constante adeus

Cada um em mil delírios


Um sempre colérico e apressado

No pino do verão, ou frio inverno

Ruge feito besta no inferno

De fragas e rochas bordejado


Outro, sempre lento e preguiçoso

Espreguiça-se campos adentro

Aos malmequeres dando alento

Para ofertar em namoro ocioso


E são os dois como essa flor

Bem me quer, mal me quer

Enfeita um namoro qualquer

Ali nas margens em puro ardor


Gosto de me pensar na intersecção

Dos rios em encontro controverso

Meus sentidos em puro reverso

Agridoce sentimento de invasão


Confluências do “eu” cínicas e puras

Um terno, outro contrabandista

De espólios certos em entrevista,

Colóquios e introspecções duras

2 rios


Fiz um poema que falava de 2 rios

Um impetuoso, outro calmo

Um sereno outro bravio

Um preguiçoso, outro corredio

Um eu, outro tu

Eu corrente de fragas batidas nas rochas

Tu esmero de seixo liso

Que atiramos para longe

E vai batendo nas águas calmas.

Há um ponto onde se juntam

Num orgasmo de orvalho que esvoaça

Eu de ardor vestido

Tu noiva de véu de branca espuma

Acolhes-me no leito do teu ventre

Margens frondosas que se alargam

Ao ímpeto de novas vagas.

Teus seios são as levadas

Onde agarro o meu caudal

Teu cabelo de trigo em suas margens

Corcel em disparada

Soltas o grito do teu peito

Águas que se juntam às minhas

Em noites de orvalho fecundo.

Àh, se água fosse o teu amor por mim

Vogar em ti


Abres-me a janela da alma e instalas-te em mim com a suavidade da brisa fresca da manhã, rejuvenescedora, sem mácula. Mas o que me fazes sentir é um furacão, ciclone, tufão que arrasa á passagem do estabelecido. Nas palavras que me sopras sinto aragem mediterrânica quente e sedutora, que me empurra e me torna cabo das tormentas na dobra sinuosa do meu eu... E qual nau Catrineta vogo nessas águas de cristal, velas enfunadas pelo teu sopro. Agarrado ao leme sinto a indecisão que te assola na direcção que me queres dar, crio pontos de amarras no meu convés na esperança de um porto de abrigo onde lançar âncora. Mas como a minha nau és ilha perdida que procuro ansiosamente encontrar. Quero ancorar na tua alma mas não te encontro na minha bússola. Deixo a minha proa seguir o seu caminho carrego na popa o espólio do teu carinho. Àhh, eu pirata, encostar a ti de bombordo gritando “á carga” de espada entre os dentes, gume afiado, apunhalar-te de paixão. Assim, deixo-me ir, quilha contra a razão esperando que cabo das tormentas se torne cabo de boa esperança, que me encaminha para as cálidas águas do Indico… Azuis, como podiam ser os teus olhos.

Aldeia em lista de espera


  • Na rua cinzenta as folhas cinzentas

    Na tarde de Outono cinzento

    Ladeado de verão azul e inverno negro



    As folhas cinzentas em matizes de púrpura

    Sangue

    Enovelam-se no vento

    Que sopra frio de norte



    E morre esbatido na gola levantada

    Preta, prenúncio de morte



    Na taberna, negro xisto, os velhos

    Jogam ases contra o trunfo da espera

    Negra, matizada de cinzento

    Dos mil dedos que a acariciam.



    Dedos que seguram cigarros

    Que seguram cinza, cinzenta

    Que o trunfo de gravidade há-de ganhar.

    Mãos cinzentas de ossos que prendem a carne

    Que o tempo teima em enrugar.



    Lusco-fusco na taberna,

    A morte em lista de espera...

Lei da Morte


Cai a noite no meu pedaço de chão,

Limiar do dia que o tempo agarra

Na luz que o segura em vão

Claridade suave que o negro traga


O uivo do lobo ouve-se além

Na promessa de noite corrida

Ouve-se a ovelha também

Morte na grelha de partida


Vem engalanada, de preto vestida

Empunhando foice e escárnio

Rosto escondido no ímpeto da corrida

Negro capuz que lhe esconde o crânio


Vem a morte assim mandada

Pelos montes e cercanias

Sempre em corrida acelerada

Contra o tempo e ventanias


Olho-a de frente quando me alcança

Vislumbro do meu pavor funduras

Faço do medo e coragem aliança

Liberto-me dessas torturas


Liberto-me da lei da morte

E todo esse tipo de sorte

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009


Numa dessas alamedas de cantos

Recônditos, cabelo ao vento,

Peito á luxúria olhos de prantos

Maria Rita escolhe o momento



Carros de olhares encarcerados

Pela visão das tristes coxas

Passam lentos e enviesados

Atentos às outras Marias roxas



Do frio que toca a rebate

Qual sino que se faz sina

De cada Maria que parte

Como esta que assim se fina



Quer a Rita ter o exclusivo

Da escolha desse momento

Partir assim, sem mais aviso

Cerimónia fúnebre ou paramento



É dia, da Rita que se fez Maria

Farta de sempre atrás correr

Hoje, sem pressas nem correria

Da Maria que se fez puta, morrer.

Fuga da Mãe


Sonhei com noites de braços abertos
Na minha direcção,
Com cheiro de pinho
E chuva fresca na terra,
Que me falavam de uma rainha,
Camponeses que dançavam,
Tambores que rufavam.
Uma banda que faz
Do meu cérebro coreto,
A mãe natureza em fuga.

Deitado em pira ardente
Lua cheia nos meus olhos
Tudo num sonho, tudo num sonho
A banda sopra agora em direcção ao sol
Lembro-me do que me dizia um amigo
Esperando que fosse mentira.

Sonhei com caravelas de prata
Voando na auréola amarela do sol
Crianças que choravam
E cores que voavam
Em redor dos escolhidos.
Tudo num sonho, tudo num sonho.
Voando num rasto de prata
A mãe natureza fugiu
Para um novo lugar ao sol...

Notas de um outro


Tão fácil virar as costas, ignorar que o problema existe. Hibernar na insensibilidade e escrever sobre o contrário. De uma chatice fazer problema fulcral e do problema fulcral chatice que não me apoquenta, que bom... Tão bom esta insustentável leveza de ser confortavelmente insensível, introspectivo no meu umbigo e divagar das razões porque parece o meu lindo umbigo, boca de saco de aspirador... Que horror, tão sujo assim? Tenho que me lembrar de o esvaziar, amanhã... Amanhã também é dia. Verter insatisfações com a mesma certeza com que puxo o autoclismo, e fico fascinado a olhar o interstício pungente que me custou obrar (ai, tanto…) a escorregar vereda abaixo, vem-me á cabeça aquele soneto, lindo, quase num acto de masturbação mental: “alma minha gentil que te partiste…”.

Troços que me traças


Caem as sortes caladas
De teu rosto mudo
Nas declarações que não fazes
E que me habituaste
Nas palavras que já me não dizes
Iguais às que teimosamente te dedico
Nessa penumbra em que te colocas
Numa escura divisória em que escolheste
Não me convidar.
Não te vou bater á porta.

Fico assim de olhar escorraçado
Traço razões ao meu ser enjeitado.
Pelas beiras do teu caminho
Bermas onde ainda me vais tendo
Na estrada que traças sem me indicar destino
Eu sigo a divisória que adivinho
Nesse troço esburacado.
Não te vou bater á porta.

Titulo: Ainda não sei...


Numa transmutação infiel
De mim para mim,
Busco o lado certo da esquina
Em que me posiciono na certeza
De nunca encontrar o lado certo
Numa busca infrutífera
Que me alicerça a insatisfação.
Se descubro fixações seguras
Logo lhes vislumbro fragilidades
Que me levam a patamares flutuantes
Em equilíbrio de arames
Só presos nas extremidades.

E descubro sabores que parecem perfeitos,
Sinto-lhes a textura acre
Do púlpito do meu desconforto.
Resvalo na inconsciência
Do meu desconhecimento,
Pústula do meu eu desconexo,
Numa esquina sem eira nem beira,
Num rodar de alça
No sentido da rosa-dos-ventos.

Compro-me sem me vender,
Amando-me sem entrega nem prazer,
Máximo denominador comum
Em contas que não sei fazer,
Potencio-me ao quadrado
Sem saber ler nem escrever.
Corto-me por fora
Rasgo-me por dentro
Sem sangue verter,
Mas busco…
O quê? Não sei, busco…
Não desisto…

Morte á espreita



A aldeia tinha um largo

Tão largo que a largura

Era medida na fundura

De olhos sem cor, sem vigor

Perdidos nos anos

Olhar no vazio, tempo de espera

No largo em terra larga

De funduras largas

Em largo desespero

Do tempo em que largavam

Crianças largadas, prenhas de fome.

E na fundura desse largo

O abade largo prenho de gula.

Largas as funduras das bolsas

De infinita fundura

Prenhas de avareza.

No fundo, bem ao fundo

Do largo, um cemitério

Porta estreita

Que largo é o tempo de espera

Da morte que do fundo espreita.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Retalhos de uma vida (retalho VIII: O regresso ou a saudade?)

Senta-se no banco do comboio em direcção há terra que não via há mais de 10 anos. Interrogava-se como estaria agora findo todo este tempo. Jorge era agora um viajante do mundo, correra a rosa-dos-ventos em busca de algo que ainda não sabia o que era com a mesma sede de conhecimento com que se revoltou contra os pais e nunca deixou de estudar contra tudo e contra todos. Revoltou-se de tenra idade. Recordava-se das mil e uma viagens de comboio que fazia quando garoto para o liceu. Era um menino, de aspecto franzino, cabelo esvoaçante, testa alta e delirante, olhos castanhos e profundos tal como a avó paterna, no queixo tinha uma covinha que lhe diziam herdado do avô materno. Os joelhos ossudos sujos da terra do quintal destacavam-se nas pernas longas que faziam lembrar as gazelas que vira entre o capim no Cacuaco. O olhar debruçava-se na janela do comboio atento á berma que lhe fugia, os postes de madeira passavam a tal velocidade que era impossível a contagem, ele queria contá-los com a mesma ânsia com que coleccionava matrículas dos carros, mas ele teimava em os contar, perdera-lhe a conta na primeira passagem de nível a seguir á estação, o comboio no seu afã,” truca truca, truca truca,” tirava-lhe as contas do acerto… mas havia de conseguir. Quando lhe perdia a conta olhava quem o rodeava a pensar que eram testemunhas silenciosas do seu fracasso, com sorte ainda pendurava o olhar num decote mais avantajado, que lhe iriam colorir os sonhos da noite, e o comboio lá continuava, “truca truca, truca truca”. Os rostos cansados do fim do dia, o homem com a lancheira do almoço, agora vazia, a tiracolo, lábios hirtos, pensamento lá longe, onde o menino não chegava, de frente para a rapariga onde há pouco perdera o olhar, mas ele não olhava… trespassava, mãos enegrecidas pelo esforço da jorna, olhos desiludidos de um tempo que se foi, para ele o comboio não fazia “truca truca, truca truca”, antes “pouca terra, pouca terra”. O comboio parou num apeadeiro, ao lado estava a loja, daquelas que tem tudo, -“pró menino e prá menina, pa senhora e cavalheiro, é entrar, é entrar…”- e lá estava a bola, pendurada, linda, vermelha com uns quadrados pretos a imitar as bolas de cautchu, a bola dele… O Sr. Arlindo ainda não a vendera, por isso era dele. E com ela ia inventar mil jogadas, ia ser o melhor guarda-redes do mundo, ponta de lança alado, defesa em forma de rochedo, e ia correr, correr como a gazela correra dele quando lhe sentira o restolhar do capim ao caminhar pé ante pé para a acariciar…mas não, ela fugira. Mas a bola não lhe fugia era dele, o decote já não interessava, só a bola… Aos saltos pelo caminho abaixo, herói de outros meninos da rua porque era ele o dono da bola. Cuidado! Não pode cair no quintal da Mariazinha Pequena que ela num ápice lhe mete a faca… Àh, se a Mariazinha soubesse! O gume daquela faca afiada por dentro dos sentimentos dos putos, alegres e esvoaçantes atrás da bola. O comboio recomeçou o “truca truca, truca truca” , olhos presos na bola até ela desaparecer… De olhos castanhos mas podiam ser Azuis-céu cor de horizontes ou até verdes, de quem herdou o menino a esperança?Jorge esboçou um sorriso para dentro acariciando a saudade, como estaria o Norberto, amigo de galhofas e tardes nos montes a descobrir ninhos? A Odete, linda como as margaridas dos campos que estava grávida quando abandonou a terra? A Odete ainda lhe fazia doer a alma…O que seria da Odete?

jornadas


Cai um manto nebuloso

Em dia de jorna

De semana que finda,

E anuncia a próxima

Jornada de jorna diária.

Manto diáfano,

Farrapos de realidade

Que o álcool aconchega

Lá onde não queres ver.

Deixas que o manto te cubra

E sopras os seus farrapos

Até á próxima jorna,

Que está já aí

Que o álcool não adia.

Faixa de Gaze


Em tempos idos
Ainda ontem
Em tempos que virão
Já amanhã
Continua uma faixa
De concentração feita
Língua de vergonha
Que espelunca o mundo
Meninos enfaixados
Que servem causas
Na faixa da vergonha.
Num facho de resistência
Existe um povo
Concentrado em faixa
Que se vai enfaixando
Em gaze pútrida.
De um lado a ferida
Do outro a arma que fere
Assim é a faixa de gaze
Que envolve os meninos
Em Gaza.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Mulher que sonho


Mulher que sonho

Tua voz são riachos cantantes

Encosta abaixo, luares de Agosto.

Teu rosto inebria-me

Na espera que desenhas

Em teus olhos, céu de esperança.

Tua pele traz-me á lembrança

Veredas de mimosas

Numa profusão de verde e amarelo

Orgia de sentidos que desaguam

Aos meus ouvidos em gorgulhos de azul.


Mulher que sonho

Teus seios auréolas de pinheiro manso

Que me atormentam a imaginação

No ribeiro sinuoso que levam

Aos teus atalhos, foz dos teus ardores.

Que abres para mim numa carícia

Profana, de corpo em oferenda

Para mim, só para mim.

Retalhos de uma vida (retalho VII: pecados que não eram)




A igreja era comprida, o interior pintado de branco debruado por várias capelas com oratórios e imagens de santos ao longo das paredes laterais altas e encimadas por granito nu, dando-lhe uma magnificência quase avassaladora. Perante o peso da obra a vontade que dá é vergar as costas numa genuflexão constante, não tanto pelo respeito que inspira antes pelo ar pesado que se respira. Odete está sentada num canto de um banco corrido esperando a sua vez para o confessionário, pernas fechadas que estreitam as mãos apertadas entre si, cabeça pendente olhando o vazio que medeia as suas pernas do banco seguinte. O silêncio é cortado só pela intermitência segredada de algumas beatas em reza surda de terço mil vezes percorrido por dedos ásperos como o olhar que deitam a quem entra e sai numa busca de culpa antecipada que se sinta no olhar de quem tem necessidade de se ajoelhar perante o abade para confessar o que lhe convenceram que era pecado em cantilenas e rezas mil vezes repetidas. Odete tinha um fascínio pelo silêncio que se respirava dentro da igreja embora naquele dia a estivesse a atormentar talvez o movimento por ser dia de “confesso”. Chegou finalmente a sua vez, deslocou-se ao confessionário e verberou a cantilena costumeira enquanto se ajoelhava do lado de lá da rede:- Pelo sinal da Santa Cruz (um murmúrio…) perdoai-me padre porque pequei – Nunca tinha percebido porque se pedia perdão ao padre e não a deus…- Há quanto tempo não te confessas minha filha? – Pergunta-lhe o padre em ares de médico da caixa que quer é despachar a consulta.- Há um mês Sr. Abade – responde-lhe Odete. E ao ser questionada pelos seus pecados Odete hesita, não sabe se será pecado e diz isso mesmo ao Padre.- Porque não me contas minha filha e eu te direi? – Responde-lhe o Abade já mais interessado. Odete começa-lhe a contar o incidente com o mestre da tinturaria, a sua saída e a reacção do Artur. O Padre ia meneando a cabeça ora assentindo, ora em jeito de crítica enervando a Odete cada vez mais. - Minha filha, deves-te lembrar que quando casaste prometeste respeito ao teu marido… - ciciou o padre por entre a rede.- Sim Sr. Abade mas ele também me jurou respeito. E parece-me que bater não faz parte desse respeito e não foi a primeira vez que me fez isso. Eu já estou farta disso. O Padre meneou novamente a cabeça em reprovação:- Ouve minha filha, tu deves-lhe obediência, tens que suportar essas provações como prova do teu amor ao teu homem e a Deus. Porque Deus lá sabe o que faz quando te envia essas oportunidades de demonstrares o teu amor ao Pai. Devias era sentir-te agradecida. Quanto a teres saído assim da fábrica, não o devias ter feito, o Sr. Almeida é um homem de bem e temente a Deus, concerteza enganaste-te em relação às suas reais intenções e precipitaste-te. Tens que tirar essas ideias da cabeça, talvez ires á fábrica, pedir perdão ao Sr. Almeida que ele decerto dá-te o emprego de volta, todos erramos na vida. Logo fala com o teu homem, acata o que ele te disser com respeito e sentido de dever, lembra-te que a Nossa Senhora sofreu muito mais ao ver o filho morrer na cruz e aceita essa tua cruz bem mais leve.- Mas a Nossa Senhora não tinha um homem que lhe batesse – responde a incrédula Odete. - Não sejas malcriada nem invoques o santo nome do Sr. em vão, faz o que te digo, agora vai, reza 15 “avé marias” e verás que te sentes melhor, vá. Odete rezou o acto de contrição e abalou do confessionário para fora, olhou as caras das beatas a olharem para ela a dissecarem o seu íntimo tentando adivinhar os “horríveis” pecados que confessou, sussurrando entre elas:- Sempre disse que não era boa rês…Odete saiu da igreja sem rezar a penitência… olhou os montes verdes debruados do amarelo das mimosas e chorou… não era um choro agudo, chorava com serenidade, chorava a sua condição, a da Amélia morta á poucos dias e de outras tantas que via a subir as encostas pelos caminhos de monte e cabras. A mudança de turno tinha sido à pouco tempo.

Retalhos de uma vida (retalho VI: Acabou.)


Surgiu do nada, ela nem sequer a viu, ouviu-a primeiro a estalar no rosto perto do ouvido, seguiu-se-lhe uma dor excruciante que lhe atingia o ouvido, parte da vista e a alma. - E agora vais viver de quê, sua estúpida? – Berrou o Artur a arder de raiva quando a mulher lhe contou o que se passou de manhã na tecelagem.- Porra, e querias o quê? Que o deixasse fazer o que ele queria? Que lhe abrisse as pernas? – Mal acaba de falar o Artur desferiu-lhe um pontapé numa anca projectando-a no chão. - A culpa é toda tua, tua e das putas das tuas colegas, andais com aquelas batas em que se vê tudo e depois os homens ficam doidos, é uma questão de tempo até que um perca a cabeça. Esperais o quê? Um homem não é de ferro. – Mas Odete já não o ouvia, tentava pôr-se de pé, agarrou-se ao pé da mesa da cozinha, e á força de braços conseguiu-se levantar. Já de pé endireitou as costas ignorando a dor, procurou no fundo de si mesma todo o seu amor-próprio, quando o olhou nos olhos era a mesma Odete que tinha fitado o céu Azul que podia ser verde tal a esperança que lhe projecta. - Tu nunca mais me ponhas as mãos que eu sou capaz de te matar – pronunciou numa voz que até a ela surpreendeu. Qualquer coisa na voz dela dizia ao Artur que o que acabara de ouvir era verdade, que ela seria capaz disso. - Sois todas umas putas… - vociferou e apressou-se porta fora, entes de sair virou-se e berrou- Trata de arranjar emprego até ao final da semana, não penses que te vou manter que esse tempo já acabou.“Esse tempo já acabou”, a frase ficou a ecoar no cérebro de Odete. Acabou sim, pensava ela enquanto se ensaboava debaixo do chuveiro, acabou o tempo de ser maltratada, espezinhada, humilhada. Acabou.

Retalhos de uma vida ( Retalho V: A viragem )


A tecelagem era um pavilhão enorme em rectângulo, os teares dispunham-se em filas de um lado ao outro no sentido do comprimento. Ao fundo do pavilhão tinha um pequeno escritório elevado num estrado rodeado de vidro, onde o mestre se plantava e tinha uma vista privilegiada sobre toda a secção. O mestre tecelão, homem baixo de bigode farfalhudo e barriga proeminente olhava atentamente o inicio dos trabalhos naquela manhã, gostava especialmente do verão, as mulheres com o calor do algodão despojavam-se de toda a roupa por baixo das batas incluindo até algumas os soutiens. O olhar de rapina que lançava não se preocupava com a produção, antes com espreitar as que mais se expunham ao seu olhar lúbrico. Entrou um dos encarregados no gabinete- Sr. Almeida, o tear 16 está com problemas na alimentação do óleo – disse-lhe o Rui, encarregado do armazém.- Quem é a operadora do tear? - Perguntou o Almeida- É a Odete Sr. Almeida. - Disse o rui.O Almeida ficou a ruminar, a Odete era um bom pedaço, pena que era muito calada, não dava confiança, mas quem sabe? Mandou o Rui parar o tear e chamar o mecânico para o arranjar, e dizer á Odete para ir para a secção de embalagem.- Diz-lhe que eu já lá vou ter para lhe dizer o que tem a fazer – rematou.Deixou passar cerca de 10 minutos, e saiu do pequeno gabinete, encaminhando-se para a secção de embalagem, a Odete já lá estava á espera de pé encostada a uma das mesas de recepção. O Almeida chamou-a para lhe dar as instruções da tarefa. Mostrou-lhe os acessórios de que teria de fazer uso enquanto deitava um olhar guloso ao decote levemente transpirado da Odete. Esta ao sentir o olhar queimar-lhe a intimidade ruboresceu a baixou os olhos.- Estás a ouvir o que te estou a dizer? - Perguntou o Almeida.- ‘Tou, mas preferia que não me olhasse assim Sr. Almeida. - Respondeu Odete.- Caralho de gajas com a mania que são boas, andam com estes decotes e depois ficam fodidas por um gajo lhes olhar para as mamas – vociferou o Almeida – melhor farias em estar calada e ser obediente, ganhavas mais com isso Odete – disse num tom mais melífluo, encostando uma mão ao farto seio de Odete como quem não quer a coisa. Num acto de nojo e antecipando o movimento seguinte do Almeida, Odete dá-lhe uma sapatada na mão.- O Sr. não me toque que eu digo ao meu “home”, ‘tá a ouvir? O Almeida desenhou um sorriso de escárnio, chegou-se a ela, agarrou-a pela cintura com a mão esquerda e com a direita agarrou-lhe as nádegas imprimindo força às ancas de encontro ao seu ventre. Acto contínuo e sem pensar a Odete desfere-lhe uma joelhada entre as pernas, fazendo-o largá-la e dobrar-se de dores.- Sua puta, vais pagá-las, gemeu o Almeida entre dentes. - Mas Odete já não o ouvia, correu pela secção foi directa aos vestiários, arrancou a bata rasgando os botões, enfiou o vestido singelo, deu uma olhada ao vestiário em jeito de despedida, passou pelo relógio de ponto sem marcar o cartão, caminhou em passo de corrida pelo longo corredor entre pavilhões em direcção á saída e nem disse nada ao porteiro. Chegada cá fora, olhou o céu azul limpo, o sol brilhante lá no alto e jurou ali que nunca nenhum homem lhe poria mais as mãos sem que ela quisesse. A Odete só mais tarde entenderia a importância dessa jura na sua vida.

Retalhos de uma vida (Retalho IV: uma teia tramada)


O relógio desperta naquele som estridente e enervante, ressoando pela madeira da mesa-de-cabeceira amplificando o cansaço da noite mal dormida a níveis dolorosos. Recebe uma cotovelada num aviso velado para desligar o tonitruante relógio que embebeda o sono de madrugadas malditas. Apresta-se a desligá-lo… remexe-se mais um pouco na cama sentindo o afago quente dos lençóis de flanela e resolve-se a colocar os pés fora da cama, senta-se na borda e enfia os pés nos chinelos gastos, coça as costas, espreguiça-se, encaminha-se para a cozinha, põe a sopa feita de véspera a aquecer, enquanto isso vai á casa de banho, senta-se na sanita, deixa-se ficar com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça inclinada sobre as mãos em concha, meditando não sabe bem em quê enquanto os interstícios se lhe vão sumindo, vaso sanitário abaixo. De seguida senta-se no bidé, faz as abluções diárias, enfrenta o espelho acima do lavatório, lava o rosto profusamente, penteia o cabelo, tira a camisa de dormir, coloca o soutien, veste as cuecas e de seguida um vestido tresmalhado em cuja cor nem reparou bem. Volta á cozinha, mete a sopa já quente na garrafa termos, faz duas sandes de marmelada. Confere o que tinha feito de véspera para o filho e marido e abala porta fora.O orvalho da manhã dá-lhe o primeiro banho de realidade, às cinco da manhã já vem gente descendo as encostas engrossando as multidões que como autómatos caminham dolentes pelas bermas da estrada, não se dão bons dias, resmunga-se qualquer coisa entre dentes. Já há luz no café onde os homens se juntam apressados para o bagaço da ordem,” para acordar”, dizem eles. Odete segue a multidão anónima sem rosto nem identidade, fantasmas em que só os braços contam, porque só os braços fazem falta para os patrões que lhes pagam. Não precisam pensar, não precisam falar, não precisam sentir, só precisam ter braços e é bom que não pensem, que não falem, que não sintam, só trabalhem…O sol já espreita por detrás dos montes que se perfilam no horizonte, únicas testemunhas da saga deste povo que nem testemunha de si próprio já quer ser… Chegados aos portões das fábricas ouve-se o canudo que gere as cadências… Seis menos cinco, saem os homens do turno da noite, rostos hirtos espoliados de orgulho, calças largas com cordas de sisal a servir de cinto, algodão por todos os poros, na inspiração e expiração a nuvem branca envelhece-os precocemente. Os homens das tinturarias são denunciados pela tosse seca de tanto químico respirar. Ouve-se o matraquear dos relógios de ponto… Trum-trum. A azáfama começa aqui, a correria ao vestiário para vestir as batas, e de novo a correria para o posto de trabalho. Às seis em ponto a alternância está feita sob o olhar atento do mestre e recomeça a cantilena dos teares, as teias* urdidas com as lançadeiras que transportam as tramas*. Uma teia de vida urdida numa trama sem fim…foi assim com a avó dela, com a mãe, com ela… será assim com o filho? Com o neto? Uma teia de trama, tramada…




* Numa tecelagem chama-se Teia ao fio que está na vertical e Trama ao fio na horizontal.

Retalhos de uma vida (retalho III: Imundice)


Odete dormia, um sono agitado povoado dos monstros do dia-a-dia, a conta do merceeiro, da padeira que com certeza amanhã não lhe poria o pão na porta por falta de pagamento, a prestação da mota do marido, os livros do filho, o fim do mês já aí com outra renda para pagar. E amanhã um novo dia de trabalho, mais teares, mais urdideiras, mais teias, mais lançadeiras… Mais…Mais…Ouve-se o trinco da porta, o Artur chegou… Ouviu-lhe o passo trôpego na escuridão á procura do interruptor da luz, algo que cai ao chão na alcatifa mas não partiu, ouve-se uma imprecação. Pela voz percebe que já esteve a beber, a luz do quarto acende-se, a Odete fecha os olhos fingindo-se a dormir. Ouve o restolhar da roupa do Artur a ser despida. O Artur deita-se a seu lado na cama sem apagar a luz, ela cerra as pálpebras numa imprecação surda. Sente-lhe a respiração no pescoço mesmo por trás dela, num bafo misto de tabaco barato e álcool bagaceiro. Ele puxa-lhe o lençol para baixo até á altura das coxas, ela tenta segurar o lençol tentando disfarçar o movimento inocente do sono, de uma forma dolente, mas ele não desiste, acto continuo puxa-lhe a camisa de dormir para a cintura descobrindo-lhe as alvas coxas, metendo-lhe a mão por dentro das cuecas, sentiu a mão dura e calejada entre as nádegas percorrendo a sua extensão até lhe encontrar o ventre salpicado de uma profusão de pelos, secos como o seu interior, mas isso não o fez desistir enfiando-lhe dois dedos de uma só vez, violando-lhe a intimidade, ela geme de dor – “tu gostas…” – disse-lhe ele em tom vaidoso de macho sem eira nem beira. Já com o pénis entumecido, nessa mesma posição o Artur afasta-lhe as cuecas para o lado e começa a procurar a entrada da gruta substituindo os dedos pelo dardo que lhe entra como ferro em brasa queimando-a como tal, devassando-lhe a intimidade, humilhando a sua condição de mulher. O vai e vem foi rápido e doloroso, Odete sentiu o liquido quente a invadi-la quase de imediato. O nojo quase lhe provoca um vómito. Ele deixou-se ficar ainda um pouco dentro dela até se retirar, procurou um lenço na mesa-de-cabeceira e acto contínuo limpou-se – “gostaste?” – perguntou-lhe. – Odete nem lhe respondeu apertando as pernas para não derramar nenhum resquício imundo nos lençóis que tanto trabalho lhe dão a lavar no ribeiro – “e se me desses uma tolha em vez de me fazeres perguntas parvas?” – “foda-se, mulher frígida, nem sabe dar prazer ao home, pega lá a puta da toalha” – atirou-lhe com a toalha á cara num acto de desprezo. Odete amarfanha a toalha dentro das cuecas e levanta-se, dirige-se á casa de banho, olha as horas no relógio, duas e trinta da manhã, às cinco o despertador tocará, o seu turno começa às seis. Senta-se no bidé e deixa a água limpa inundá-la retirando-lhe a imundice, Odete esfrega com o sabão, mais e mais, tentando retirar toda a imundice do corpo, da alma…Mas ela continua lá… A imundice, no corpo, na alma… Na vida. Artur dormia já o sono dos justos.

retalhos de uma vida (retalho II: morte numa tarde de verão)


Ouvem-se as sirenes das fábricas a anunciar a fim de um turno e o princípio de outro, 2 horas menos 5 minutos de uma tarde de verão, mas que podia ser de inverno. Odete arruma a bata dentro da bolsa onde cabe também a marmita agora vazia. A massa humana cruza-se nos corredores da fábrica, uns a sair outros a entrar. A azáfama em volta dos cartões de ponto num matraquear constante… E é bom que não avarie ou os cartões terão que ser assinados uma a um pelo chefe de turno que nestas alturas parece que faz de propósito para demorar - “primeiro os que vão iniciar o turno”, grita ele – “mas Sr. Faria, eu tenho a carreira para apanhar”, dizem algumas mulheres no afã de saírem. “Paciência” – grita o Faria. Mas naquele dia não… O relógio funcionou, sempre naquele matraquear monótono como a lançadeira do tear. Finalmente cá fora Odete enceta a marcha para casa, juntamente com a mole humana que desce a Alameda das Tílias, todas com farrapos de algodão preso aos cabelos e á roupa que lhes denunciam a condição. Todas têm ainda uma longa tarde pela frente, acelerando assim a marcha, pela estrada de paralelo irregular e escorregadio, atravessam a ponte, e cortam caminho por umas escadas íngremes que quase lhes tira a respiração. No fim das escadas têm ainda o resto da subida para encetar até desembocarem no largo da feira…o suor escorre-lhes em profusão pela testa, pelo colo dos seios dando ao decote um ar quase lúbrico não fossem as feições fechadas e esforçadas das mulheres que limam as arestas aos paralelos da estrada. Ao lado de Odete caminhava ofegante a Amélia, sempre divertida e bonacheirona nos bancos de escola, mas a vida tornou-a amarga e de mau trato. A vida, esta maldita vida…Em frente ao largo da feira caminhavam pela berma da estrada rentes ao muro da fábrica de desperdícios, as duas conversando cada uma com seus botões que o caminho até casa ainda era longo. O carro surgiu do nada na curva apertada em frente á fábrica, perdeu a direcção, não consegue desfazer a curva, Odete estacou o olhar no carro num misto de terror e fascínio, secundada pela Amélia dois ou três metros atrás. Odete ouviu o estrondo do carro contra o muro, ainda conseguiu vislumbrar o esgar de dor da Amélia, mas só o som dos vidros e chapa estilhaçada se ouvia ainda. O mulherio acorreu em debandada ao local, fazendo roda em volta da Amélia. Odete ouvia os comentários – “morreu, ai minha nossa senhora…”, “ficou como um passarinho”, “o que vai ser dos filhinhos dela?”. Os comentários deram lugar ao pranto das carpideiras alto e sonante como convém nestes momentos… Odete chorou baixinho, deixando uma lágrima teimosa escorregar pelo rosto trigueiro. Não lamentava o azar da amiga, lamentava a sua sorte, ali ao pé, tão perto e foi na Amélia que o carro bateu. Era dia da Amélia morrer, e quando, mas quando seria o dia da Odete?A Amélia morreu assim numa tarde de verão mas que podia ser de inverno

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Como assar um naco de carne (receita)


O cozinheiro instrui a ajudante
A enrolar bem o naco,
Deve apertá-lo firme entre as mãos
De forma a ficar duro e consistente.
Entretanto testa o forno,
De lenha como convém
Que boa fornalha deve ser aquecida
De fora para dentro.
A lenha é colocada no bordo
E o calor expande-se para o interior
Em fogo lento, até ficar em brasa.
Para ver se está no ponto
O cozinheiro molha o dedo
E coloca no interior,
Para aferir da temperatura.
Aí a ajudante dá uma ajuda,
Com delicadeza introduz o naco
No interior da fornalha.
O cozinheiro faz um “hum”
De deleite, antecipando o produto final.
A ajudante rega o naco
Com o molho que o cozinheiro
Provou antecipadamente.
Durante a cozedura a ajudante
Pode e deve virar o naco no forno
Para cozer igualmente
De todos os lados
Mudando-o de posição.
Ao retirá-lo bem húmido e suculento
A ajudante deve provar
Para ao cozinheiro demonstrar
A sua mestria no assar.
Se no forno não gostar
Pode sempre usar a panela
Logo ao lado,
Mais pequenina e apertadinha
E igualmente salutar.
Mas com bom azeite untar
Para no fundo não pegar.