quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Retalhos de uma vida (Retalho IV: uma teia tramada)


O relógio desperta naquele som estridente e enervante, ressoando pela madeira da mesa-de-cabeceira amplificando o cansaço da noite mal dormida a níveis dolorosos. Recebe uma cotovelada num aviso velado para desligar o tonitruante relógio que embebeda o sono de madrugadas malditas. Apresta-se a desligá-lo… remexe-se mais um pouco na cama sentindo o afago quente dos lençóis de flanela e resolve-se a colocar os pés fora da cama, senta-se na borda e enfia os pés nos chinelos gastos, coça as costas, espreguiça-se, encaminha-se para a cozinha, põe a sopa feita de véspera a aquecer, enquanto isso vai á casa de banho, senta-se na sanita, deixa-se ficar com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça inclinada sobre as mãos em concha, meditando não sabe bem em quê enquanto os interstícios se lhe vão sumindo, vaso sanitário abaixo. De seguida senta-se no bidé, faz as abluções diárias, enfrenta o espelho acima do lavatório, lava o rosto profusamente, penteia o cabelo, tira a camisa de dormir, coloca o soutien, veste as cuecas e de seguida um vestido tresmalhado em cuja cor nem reparou bem. Volta á cozinha, mete a sopa já quente na garrafa termos, faz duas sandes de marmelada. Confere o que tinha feito de véspera para o filho e marido e abala porta fora.O orvalho da manhã dá-lhe o primeiro banho de realidade, às cinco da manhã já vem gente descendo as encostas engrossando as multidões que como autómatos caminham dolentes pelas bermas da estrada, não se dão bons dias, resmunga-se qualquer coisa entre dentes. Já há luz no café onde os homens se juntam apressados para o bagaço da ordem,” para acordar”, dizem eles. Odete segue a multidão anónima sem rosto nem identidade, fantasmas em que só os braços contam, porque só os braços fazem falta para os patrões que lhes pagam. Não precisam pensar, não precisam falar, não precisam sentir, só precisam ter braços e é bom que não pensem, que não falem, que não sintam, só trabalhem…O sol já espreita por detrás dos montes que se perfilam no horizonte, únicas testemunhas da saga deste povo que nem testemunha de si próprio já quer ser… Chegados aos portões das fábricas ouve-se o canudo que gere as cadências… Seis menos cinco, saem os homens do turno da noite, rostos hirtos espoliados de orgulho, calças largas com cordas de sisal a servir de cinto, algodão por todos os poros, na inspiração e expiração a nuvem branca envelhece-os precocemente. Os homens das tinturarias são denunciados pela tosse seca de tanto químico respirar. Ouve-se o matraquear dos relógios de ponto… Trum-trum. A azáfama começa aqui, a correria ao vestiário para vestir as batas, e de novo a correria para o posto de trabalho. Às seis em ponto a alternância está feita sob o olhar atento do mestre e recomeça a cantilena dos teares, as teias* urdidas com as lançadeiras que transportam as tramas*. Uma teia de vida urdida numa trama sem fim…foi assim com a avó dela, com a mãe, com ela… será assim com o filho? Com o neto? Uma teia de trama, tramada…




* Numa tecelagem chama-se Teia ao fio que está na vertical e Trama ao fio na horizontal.

Sem comentários:

Enviar um comentário