terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Retalhos de uma vida (retalho VIII: O regresso ou a saudade?)

Senta-se no banco do comboio em direcção há terra que não via há mais de 10 anos. Interrogava-se como estaria agora findo todo este tempo. Jorge era agora um viajante do mundo, correra a rosa-dos-ventos em busca de algo que ainda não sabia o que era com a mesma sede de conhecimento com que se revoltou contra os pais e nunca deixou de estudar contra tudo e contra todos. Revoltou-se de tenra idade. Recordava-se das mil e uma viagens de comboio que fazia quando garoto para o liceu. Era um menino, de aspecto franzino, cabelo esvoaçante, testa alta e delirante, olhos castanhos e profundos tal como a avó paterna, no queixo tinha uma covinha que lhe diziam herdado do avô materno. Os joelhos ossudos sujos da terra do quintal destacavam-se nas pernas longas que faziam lembrar as gazelas que vira entre o capim no Cacuaco. O olhar debruçava-se na janela do comboio atento á berma que lhe fugia, os postes de madeira passavam a tal velocidade que era impossível a contagem, ele queria contá-los com a mesma ânsia com que coleccionava matrículas dos carros, mas ele teimava em os contar, perdera-lhe a conta na primeira passagem de nível a seguir á estação, o comboio no seu afã,” truca truca, truca truca,” tirava-lhe as contas do acerto… mas havia de conseguir. Quando lhe perdia a conta olhava quem o rodeava a pensar que eram testemunhas silenciosas do seu fracasso, com sorte ainda pendurava o olhar num decote mais avantajado, que lhe iriam colorir os sonhos da noite, e o comboio lá continuava, “truca truca, truca truca”. Os rostos cansados do fim do dia, o homem com a lancheira do almoço, agora vazia, a tiracolo, lábios hirtos, pensamento lá longe, onde o menino não chegava, de frente para a rapariga onde há pouco perdera o olhar, mas ele não olhava… trespassava, mãos enegrecidas pelo esforço da jorna, olhos desiludidos de um tempo que se foi, para ele o comboio não fazia “truca truca, truca truca”, antes “pouca terra, pouca terra”. O comboio parou num apeadeiro, ao lado estava a loja, daquelas que tem tudo, -“pró menino e prá menina, pa senhora e cavalheiro, é entrar, é entrar…”- e lá estava a bola, pendurada, linda, vermelha com uns quadrados pretos a imitar as bolas de cautchu, a bola dele… O Sr. Arlindo ainda não a vendera, por isso era dele. E com ela ia inventar mil jogadas, ia ser o melhor guarda-redes do mundo, ponta de lança alado, defesa em forma de rochedo, e ia correr, correr como a gazela correra dele quando lhe sentira o restolhar do capim ao caminhar pé ante pé para a acariciar…mas não, ela fugira. Mas a bola não lhe fugia era dele, o decote já não interessava, só a bola… Aos saltos pelo caminho abaixo, herói de outros meninos da rua porque era ele o dono da bola. Cuidado! Não pode cair no quintal da Mariazinha Pequena que ela num ápice lhe mete a faca… Àh, se a Mariazinha soubesse! O gume daquela faca afiada por dentro dos sentimentos dos putos, alegres e esvoaçantes atrás da bola. O comboio recomeçou o “truca truca, truca truca” , olhos presos na bola até ela desaparecer… De olhos castanhos mas podiam ser Azuis-céu cor de horizontes ou até verdes, de quem herdou o menino a esperança?Jorge esboçou um sorriso para dentro acariciando a saudade, como estaria o Norberto, amigo de galhofas e tardes nos montes a descobrir ninhos? A Odete, linda como as margaridas dos campos que estava grávida quando abandonou a terra? A Odete ainda lhe fazia doer a alma…O que seria da Odete?

Sem comentários:

Enviar um comentário