quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Retalhos de uma vida (retalho VII: pecados que não eram)




A igreja era comprida, o interior pintado de branco debruado por várias capelas com oratórios e imagens de santos ao longo das paredes laterais altas e encimadas por granito nu, dando-lhe uma magnificência quase avassaladora. Perante o peso da obra a vontade que dá é vergar as costas numa genuflexão constante, não tanto pelo respeito que inspira antes pelo ar pesado que se respira. Odete está sentada num canto de um banco corrido esperando a sua vez para o confessionário, pernas fechadas que estreitam as mãos apertadas entre si, cabeça pendente olhando o vazio que medeia as suas pernas do banco seguinte. O silêncio é cortado só pela intermitência segredada de algumas beatas em reza surda de terço mil vezes percorrido por dedos ásperos como o olhar que deitam a quem entra e sai numa busca de culpa antecipada que se sinta no olhar de quem tem necessidade de se ajoelhar perante o abade para confessar o que lhe convenceram que era pecado em cantilenas e rezas mil vezes repetidas. Odete tinha um fascínio pelo silêncio que se respirava dentro da igreja embora naquele dia a estivesse a atormentar talvez o movimento por ser dia de “confesso”. Chegou finalmente a sua vez, deslocou-se ao confessionário e verberou a cantilena costumeira enquanto se ajoelhava do lado de lá da rede:- Pelo sinal da Santa Cruz (um murmúrio…) perdoai-me padre porque pequei – Nunca tinha percebido porque se pedia perdão ao padre e não a deus…- Há quanto tempo não te confessas minha filha? – Pergunta-lhe o padre em ares de médico da caixa que quer é despachar a consulta.- Há um mês Sr. Abade – responde-lhe Odete. E ao ser questionada pelos seus pecados Odete hesita, não sabe se será pecado e diz isso mesmo ao Padre.- Porque não me contas minha filha e eu te direi? – Responde-lhe o Abade já mais interessado. Odete começa-lhe a contar o incidente com o mestre da tinturaria, a sua saída e a reacção do Artur. O Padre ia meneando a cabeça ora assentindo, ora em jeito de crítica enervando a Odete cada vez mais. - Minha filha, deves-te lembrar que quando casaste prometeste respeito ao teu marido… - ciciou o padre por entre a rede.- Sim Sr. Abade mas ele também me jurou respeito. E parece-me que bater não faz parte desse respeito e não foi a primeira vez que me fez isso. Eu já estou farta disso. O Padre meneou novamente a cabeça em reprovação:- Ouve minha filha, tu deves-lhe obediência, tens que suportar essas provações como prova do teu amor ao teu homem e a Deus. Porque Deus lá sabe o que faz quando te envia essas oportunidades de demonstrares o teu amor ao Pai. Devias era sentir-te agradecida. Quanto a teres saído assim da fábrica, não o devias ter feito, o Sr. Almeida é um homem de bem e temente a Deus, concerteza enganaste-te em relação às suas reais intenções e precipitaste-te. Tens que tirar essas ideias da cabeça, talvez ires á fábrica, pedir perdão ao Sr. Almeida que ele decerto dá-te o emprego de volta, todos erramos na vida. Logo fala com o teu homem, acata o que ele te disser com respeito e sentido de dever, lembra-te que a Nossa Senhora sofreu muito mais ao ver o filho morrer na cruz e aceita essa tua cruz bem mais leve.- Mas a Nossa Senhora não tinha um homem que lhe batesse – responde a incrédula Odete. - Não sejas malcriada nem invoques o santo nome do Sr. em vão, faz o que te digo, agora vai, reza 15 “avé marias” e verás que te sentes melhor, vá. Odete rezou o acto de contrição e abalou do confessionário para fora, olhou as caras das beatas a olharem para ela a dissecarem o seu íntimo tentando adivinhar os “horríveis” pecados que confessou, sussurrando entre elas:- Sempre disse que não era boa rês…Odete saiu da igreja sem rezar a penitência… olhou os montes verdes debruados do amarelo das mimosas e chorou… não era um choro agudo, chorava com serenidade, chorava a sua condição, a da Amélia morta á poucos dias e de outras tantas que via a subir as encostas pelos caminhos de monte e cabras. A mudança de turno tinha sido à pouco tempo.

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