terça-feira, 5 de maio de 2009

Retalho XIX Água conspurcada


Olhava a água que descia do rego cavado no granito encaminhando-se para o grande tanque comunitário onde as mulheres da aldeia lavavam a roupa, a água limpa e translúcida que desabava em correria sobre a outra já azulada e espumosa pelas mil lavagens das mil peças de roupa que as mil mulheres carpideiras de mil sofrimentos ali lavavam. O Artur morrera, disseram-lhe assim como se fosse uma coisa normal. E ela parara ali a contemplar a água fria e cristalina ainda livre do conspurco da roupa suja, lembrando quando se casara, a lua-de-mel, as promessas de amor eterno, a melena oleosa na frente dos olhos, o corpo poderoso que por instantes fugazes a fizera feliz, lá atrás, muito lá atrás… seguindo-lhe o curso descendente olhou a água já suja do sabão, das fraldas pestilentas, dos lençóis manchados, das camisolas suadas, das cuecas embotadas, tantas das mais de mil que já lhe passaram pelas mãos cortadas pelo frio daquela água e do químico do sabão. Só se ouvia o som da água a cair no tanque, as outras mulheres estavam em silêncio tentando adivinhar o que lhe ia na alma. A morte era algo normal, vivida e chorada por todos e depressa esquecida embora estas mortes não fossem normais. Odete recolheu vagarosamente o lençol que tinha em mãos já torcido, caminhou lentamente em direcção ao pequeno terreno elevado acima do tanque e começou a estender o lençol aos tímidos e teimosos raios de sol que espreitavam entre as nuvens ameaçadoras. Mas era preciso aproveitar o sol em Janeiro… estendeu maquinal e cuidadosamente o lençol, que não mais aconchegaria o seu Artur, não mais testemunharia as estaladas que ele lhe dava, nem os seus estertores orgásticos que a deixavam dorida e conspurcada como a água do tanque. A confusão instalara-se-lhe na alma de uma forma que não conseguia destrinçar, se era alivio se era sofrimento o que sentia…

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