segunda-feira, 26 de outubro de 2009

De mim e de outras mulheres


A Mariazinha era assim a modos que uma Avó na idade que se sabia e aparentava fisicamente. Mas era uma gaiata na forma como encarava a vida de sorriso franco e maroto sempre engatilhado. A Maria Pequena, assim também era conhecida, era a peixeira da terra. Assentava tenda no balcão da estação de caminho de ferro fazendo coro com os rangidos doídos das velhas locomotivas que ali paravam na altura.
Eu era um miúdo de joelhos ossudos e melenas na frente dos olhos que ia apanhar o comboio das 5.30 da manhã para ir para a escola depois de 2 quilómetros de marcha maldizendo a madrugada escura e fria durante cerca de meia hora até lá chegar. Ao chegar a Mariazinha já lá estava de cestas vazias á cabeça abençoando a Senhora da Agonia por me ver chegar são e salvo por entre o temporal. Sacava logo da garrafa termos e enchia-me uma malga de leite com café quentinho obrigando-me a beber tudo até ao fim, que me fazia bem, dizia ela enquanto se metia galhofeira com as minhas pernas finas e me apalpava o cúbito e o rádio – Vês, até se consegue distinguir os ossos, não te alimentas – dizia-me em tom de critica maternal que me acarinhava a alma e o espírito rebelde. Baixava os meus olhos castanhos e deixava-me envolver na meiguice da Mariazinha. No comboio rocinante e cansado, lado a lado nos bancos corridos de ripas de madeira, ela contava-me as desventuras de criar 7 filhos com o seu negócio, de como correu de casa com o marido bêbado por ele não partilhar das azafamas da casa e da vida e ainda lhe aquecer o lombo com o cinto. – dei 100 escudos ao Zé Repente para lhe dar uma sova de aviso, nunca mais lá pôs os pés em casa e foi o dinheiro mais bem gasto da minha vida – dizia ela quase nos convencendo que levou a partir daí uma vida feliz. Eu pela minha parte contava à Mariazinha as minhas desventuras amorosas com uma moreninha de face trigueira que insistia em ignorar os meus avanços e a Mariazinha não me respondia que isso eram tolices como os outros adultos, dizia-me para não desistir, um dia eu ia conquistar a Catarina e ela haveria de ir ao nosso casamento, afiançava-me. De maneira que a Mariazinha era assim a modos que a minha melhor amiga. Aos sábados ainda me guardava as sardinhas mais pequeninas que encontrasse na canasta que transportava no alto da cabeça sem mãos, ocupadas com sacos e sacos que arrastava atrás de si com uma força que nunca percebi.
Um dia a Mariazinha não apareceu, estranhei, perguntei ao chefe da estação se sabia dela mas nada. Ao vir embora mal desembarquei fui ao sítio dela, e não a vi como de costume àquela hora a rematar os últimos carapaus por metade do preço, para deixar a canasta vazia. No dia seguinte disseram-me que a Mariazinha tinha sido atropelada quando ia para a estação naquela manhã e não tinha resistido aos ferimentos. Eu não quis acreditar, que não, a Mariazinha tinha uma força enorme, a Mariazinha resistiria, era como a rocha onde a lapa se agarrava para se segurar do mar revolto. Era a minha rocha, a minha certeza.
A Mariazinha foi a enterrar numa manhã de sol linda como o sorriso que me desenhava todas as manhãs, levei-lhe um ramo de mimosas amarelas que ela tanto gostava que apanhei mesmo ali ao pé da estrada, ela iria gostar da oferta singela, eu tinha a certeza. Durante o féretro senti uma presença ao meu lado, olhei para o lado, a Catarina ao meu lado levava também ela um ramo de mimosas, deu-me a mão… E caminhou comigo.

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