quarta-feira, 28 de outubro de 2009

De mim e de outras mulheres II


O velho furgão Ford Transit ia digerindo a estrada com algum sofrimento, sentia-se as entranhas gemerem a cada metro de caminho que galgava lambendo a berma da velha estrada em cada curva sinuosa. O banco da frente suportava 3 lugares, o do condutor meu tio o meu pai na pendura e eu no meio. O meu tio ia debitando as piadas gastas que já conhecia desde que me conhecia, o meu pai ria-se não sei se da piada se para fazer o jeito ao irmão mais velho. Eu ia calado no meio olhava a estrada sem a ver espartilhado pelos dois adultos pelo fato feito à medida e pelas incertezas do desconhecido para onde o velho furgão me levava. Olhava a estranha fatiota que o meu pai me mandou fazer no alfaiate da aldeia, que já era um homem e devia usar fato e gravata nos acontecimentos importantes como era o caso, dizia-me o meu pai enquanto o velho alfaiate me tirava as medidas. Era justo debaixo dos braços apertando-me os movimentos, as calças eram de boca-de-sino como se usava, uma moda que me fazia levar uns tabefes da minha mãe que eu não gostava de ver as calças a dançarem junto aos sapatos. O colarinho da camisa feito em entretela dura estrangulava-me o pescoço e os sentidos dificultando-me o simples acto de engolir numa rara impressão que me cortava a oxigenação do cérebro criando um vazio que eu queria combater. Mas nada me vinha a não ser o medo do desconhecido e ficava assim como os peixes que arribam à praia e morrem na areia de boca aberta num movimento ridículo, num “abre e fecha” angustiante.
Os travões imobilizaram o furgão num resfolegar de radiador esforçado em frente a um edifício enorme de janelas debruadas a granito todas fechadas. A porta enorme em carvalho que se adivinhava grosso estava também fechada. Tinha um batente de ferro que o meu tio bateu com força, enquanto eu ajudava o meu pai a tirar a mala enorme de chapa da traseira do furgão, onde continha todo o enxoval que os padres mandaram trazer na convocatória que fizeram dando a conhecer aos meus pais que “graças a deus eu tinha sido escolhido para ingressar no seminário menor de braga” o que fez a minha mãe agradecer efusivamente à Sra da Aparecida prometendo logo ali que eu iria a pé ao Santuário da Sra lá no alto da serra. Pousei a mala e olhei as mãos doridas pelo peso e pela marca a vermelho das pegas em alumínio fino, como quem admira uma chaga – maldito fato… Porque tudo tem que ser tão doloroso? – Perguntei-me em silêncio. Um padre de aspecto severo vestido de batina preta franqueou-nos as portas, cumprimentou o meu pai e meu tio e deu-me instruções logo de imediato em jeito de interrogatório – Trouxeste livros? Se trouxeste entrega ao teu pai que não é permitido ler a não ser a bíblia e outros livros de carácter religioso que nós fornecemos. Não és chorão pois não? Espero que não que nós não gostamos de meninos que choram de noite com saudades da mama. – E ia debitando essas instruções enquanto caminhava num andar de ganso desconjuntado pelo longo corredor de ripas de carvalho no chão, com tectos altos debruados a gesso caiado. As molduras na parede branca eram em madeira trabalhada e finamente rendilhada e continham invariavelmente imagens de pessoas com bafos de santidade. O bafo do padre continuava-me a chegar aos ouvidos em forma de conselhos e ameaças veladas cujo cumprimento me dariam a nota de comportamento no final do período.
O meu pai tinha ficado lá atrás com o meu tio de quem me separei e despedi com um “passou bem” à homem como dizia o meu pai. E apetecia-me tanto um abraço…! O colarinho de entretela agoniava-me, tirava-me o ar, só me chegava o cheiro bafiento do velho edifício perdigotar verrinoso do padre. Uma lágrima teimosa espreitava-me no canto do olho, abafei-a com as costas da mão… Maldito fato, porque tudo tem que doer tanto?

Sem comentários:

Enviar um comentário