quarta-feira, 14 de abril de 2010

O sol por uma fresta


O Manuel levantava-se com os primeiros raios de sol que escorriam pelas frestas da persiana do T1 que habitava com a Madalena e seus dois filhos. Ia para a casa de banho onde fazia a barba e enganava a sujidade com umas borrifadelas de água gelada nos sovacos e nas virilhas que o gás para o esquentador só com o 13º se conseguia, o resto do ano aquecia-se a água para os banhos e de manhã não havia tempo nem pachorra para isso.

O Manuel depois de acordar a mulher marchava porta fora com o estômago enganado por uma bucha de pão seco, entalado por um chá de cidreira, e juntava-se à turba humana que ia saindo dos prédios vizinhos e lhe faziam companhia silenciosa, só interrompida pelas saudações da praxe. Com as mãos enfiadas nos bolsos e as golas levantadas ao vento cortante que zurzia as orelhas e a dignidade, aquela multidão ia engrossando ao mesmo tempo que as distancias das fábricas iam encurtando, depois desfaziam-se cada um seguindo caminho para a fábrica de destino.

Depois o Manuel e os companheiros entravam nas secções barulhentas de máquinas em movimento cadente e monótono num “trum-trum, trum-trum” que ecoava no cérebro desde que se lembrava ainda miúdo quando acompanhava o pai as primeiras vezes para aprender o oficio.

O Manuel não conheceu a internet, só a conheceu de ouvir falar. O Manuel não conheceu os netos exaurido por uma vida sem sentido. O Manuel não amou, casou porque era tradição. O Manuel não deixou herança, tem uma lápide com o nome gravado numa placa de granito polido. O Manuel não tem idade, tem os anos que os filhos de lembram: “uns sessenta e tais”! O Manuel não sabe se foi infeliz, simplesmente porque nunca conheceu a felicidade. O Manuel não viveu, viu viver no caminho que fazia de casa para a fábrica e vice-versa.

O sol sempre nasceu para o Manuel pelas frestas da janela. Ainda lhe incomodam o sono com outros “truns-truns” sempre que vem um outro Manuel para o seu lado e lhe cerram o caixão ali perto.

O Manuel podia ser o José ou o António, mas era o Manuel porque a lápide assim diz.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Igreja ferida de morte

Não sou muito de modas, nem sequer de correntes quer de opinião quer de qualquer outra coisa como aquelas parvoíces que de vez em quando me caem na caixa de email para enviar para mais não sei quantos incluído para a pessoa que enviou, normalmente com imagens ridículas de Cristo ou um outro qualquer símbolo religioso, chego a sentir pena de quem acredita nisso. Devem acreditar caso contrário porque me mandariam? Não sou nem nunca fui seguidista, porque entendo que há sempre uma reserva de opinião própria sobre tudo e sobre todos, e uma história e sua veracidade e até o seu desenlace dependem muito de quem a conta.
Quando miúdo era muito crente, acreditava piamente na religião e nos seus insondáveis dogmas, começou essa crença a esbater-se com a leitura e conhecimento e com a negação de que a própria igreja estabelece naquilo que lhe serve de suporte à sua fé. De coisas que devem ser interpretadas literalmente e outras que devem servir de meios de comparação conforme as necessidades que a própria igreja confere em função do tempo que vive e das justificações que necessita para os sortilégios que fabrica e esconde a seu bel-prazer. Aqui há uns tempos um bispo brasileiro cometeu o pecado (para mim não deixa de o ser) de roubar a uma criança de 9 anos a crença em que foi educada porque essa criança foi violada e como praticou aborto de uma gravidez produto desse acto foi unilateralmente excomungada com o beneplácito do Vaticano. Esse mesmo Vaticano que é governado por uma sinistra personagem que enquanto dirigiu a Congregação da Fé no episcopado de João Paulo II se achou no direito de escamotear crimes ao nível do mais horrendo que podem ser praticados pelo ser humano, propondo até em alguns casos a reintegração dos causídicos nas mesmas paróquias em que os factos foram conhecidos. Desde que começaram a ser conhecidos os casos de Boston, seguiu-se a Irlanda, e agora também do continente africano chegam-nos ecos desses abusos perpetrados sobre os pobres entre os pobres.
Fui educado num colégio interno, vulgo seminário, durante um período da minha vida, facto que já relatei em algumas crónicas de índole intimista e auto-biográfico. Nunca fui assediado pessoalmente a nível sexual mas fui várias vezes espancado por simples notas menos boas, ou por falar para o lado na sala de estudo. Lembro-me da alimentação frugal que nos era servida e de um miúdo que ficou com as mãos inchadas da palmatória com que foi castigado por ter pegado em mais de um pão. Lembro-me dos nomes de (quase) todos os padres que cometiam esses abusos físicos no seminário menor de Braga conhecido como “a tamanca”. Lembro-me que a cultura do castigo físico era o principal meio de educação nesse sítio tenebroso em meados dos anos 80. Lembro-me que à boca pequena se falava deste ou daquele padre que gostava de passar pelas casas de banho de manhã quando fazíamos as abluções diárias. Lembro-me do emérito Bispo D. Eurico falar em disciplina no sermão de boas vindas (estranhamente era assim que lhe chamavam) aos novos garotos que arribavam ali com cara de assustados cujo choro ecoava nos vastos dormitórios. Lembro-me que éramos crianças simples e crentes, lembro-me que nos roubavam essa fé à chibatada que zurzia inclemente na barriga das pernas deixando marcas durante semanas. Na altura eu não percebia nada, hoje ecoa-me em comparação as memórias do Marquês de Sade. E nem sequer se pode dizer que eram uns poucos como querem agora fazer crer, era a própria cultura de todo um ensino, de toda uma diocese que o Sr. Bispo se encarregava de abençoar.

domingo, 11 de abril de 2010

Barco de papel


A folha em branco à minha frente
é todo um mar de sugestões,
longe de ser vazia
é o verde-esmeralda do mar
que te enovela os cabelos,
branca sim,
a cor leitosa da tua pele
que me embriaga o tacto.
Translúcida a imagem
que me perpassa do teu olhar
e se esbate no meu
nas íris que perscruto
em busca não sei de quê
mas que tu me descobres
no brilho que lhes imprimes.
É de papel o barco que sou
nas flutuações do teu sentir,
vogo ao sabor do teu querer.
Como rasgar a minha folha
ainda que em branco permaneça?

domingo, 7 de março de 2010

Improvisos na praia do Tamariz


Sopra-me no rosto a brisa amena
Que deposita nos meus lábios um sabor salgado
E nos olhos promessas de infinito.
O mar que me vem beijar os pés
Numa corrente translúcida
Devolve-me a ternura de tempos
Que julgo ter passado,
Que julgo ter provado,
Algures entre a realidade e o sonho
E adivinho já aí,
No revolver de cada onda
Que me renova a promessa
Do desejo temperador.
Fica a espuma a espraiar-se
Preguiçosa e dolente
Numa comodidade aconchegante.
Já não tenho saudade,
Só o desejo que a próxima onde me agite de novo.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Esqueleto à beira mar plantado


Degolam a palavra,
Pelo simples e egoísta acto de matar,
Idiotas inúteis
Ocos entre o parietal e o frontal,
Corre-lhes nas artérias exangues
Um pútrido líquido que esparramado pelo nasal
Contamina suínos à peste humana.
Admiram a unha tratada na ponta da falange,
Raspam o sabugo,
Engordurado pelos que rompem a cervical
A engordar-lhes os fígados hepáticos.
Longas vidas têm as bestas
Que da ciática se livram
À custa de quem rompe as rotulas
A encerar-lhes o lídimo piso
Onde assentam as plantas
Que lhes suportam os cuneiformes.
Debitam diarreias para audiência
De campânula em riste
Ignara dos riscos que os tímpanos sofrem
Ao oferecer a tuba auditiva aos rectos falantes.
Abanam as clavículas em jeito contristado e pesaroso
As pobres audiências
Que lhes sufragaram o direito de perdigotar aleivosias,
Continuando a romper falanges
Nas plainas alisantes da madeira
Onde sentam o sacro cu.
Despontam como papoilas na primavera
Os gordos asnos sufragados
Para um povo que lhes merece o peso,
Que pela força não os desencadeira
E por uma cruz os legitima.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Primavera do céu


Para onde vais andorinha
De asa ao vento assim cansada?
Vais para longe, vens de longe
Sempre em busca da alvorada

Que te acolha e te sossegue
Esse quebradiço voar
Num golpe de asa sem fim
Que vem lá de lá do mar.

Se eu pudesse mãe coragem
Substituía-me às monções
Fazia-te um ninho no meu peito
Que te abrigasse todas as estações

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Entre mim e eu


Encostado no corrimão
da minha paciência
sustenho o ar num acervo de agonia
no passo que me recuso a dar
ao degrau seguinte,
preso por uma linha imaginária
que se prende entre o ascendente
e o descendente
nunca sei qual o degrau que piso,
não sei se subo,
se desço,
se fico,
se vou…
abro a gaveta da memória,
aquela bafienta
onde arrumo o que não gosto
e num pressuposto absoluto de limpeza
sopro o pó remanescente
que emerge no ar
e aproveito para enfiar na narina,
na tentativa de me etilizar
no estado sereno da insensibilidade necessária
para abordar o que ali arrumei,
de tempos que não quero recordar,
aos quais não quero voltar.
Estufo o peito num abafado de vinha de alhos
e dou o passo na direcção do degrau
que se precipita no abismo
que me atormenta os sonhos de quando em vez,
caio…
caio…
E o fundo nunca aparece…
Sempre a cair,
numa queda sem fim,
acordo nesse terror
de uma queda abrupta no infinito
e alvoraçado como um bote de borracha que se esbate com as marés,
rompo a quilha na aresta de rocha
e vagueio no ar feito balão
que se esvazia e vai batendo pelas esquinas
até cair inerte no chão do meu desolamento.
Nesse acordar
onde não distingo a razão da minha insanidade
as pálpebras recusam-se a abrir,
o corpo não me obedece,
sei que acordei,
mas o meu corpo não sabe,
como companhia tenho o silencio
e a negritude a que o meu corpo me condena
na insanável recusa de olhar.
Já não sou rio que rompe margens,
não sou mar de águas amenas que te vai beijar,
sou assim uma espécie de regato
que se estiola nos rigores do estio
e mirra seco nas brechas das montanhas que me emparedam.
Vejo-me agora de cima com um sorriso cínico,

eu vejo mas o meu corpo não sabe