O Manuel levantava-se com os primeiros raios de sol que escorriam pelas frestas da persiana do T1 que habitava com a Madalena e seus dois filhos. Ia para a casa de banho onde fazia a barba e enganava a sujidade com umas borrifadelas de água gelada nos sovacos e nas virilhas que o gás para o esquentador só com o 13º se conseguia, o resto do ano aquecia-se a água para os banhos e de manhã não havia tempo nem pachorra para isso.
O Manuel depois de acordar a mulher marchava porta fora com o estômago enganado por uma bucha de pão seco, entalado por um chá de cidreira, e juntava-se à turba humana que ia saindo dos prédios vizinhos e lhe faziam companhia silenciosa, só interrompida pelas saudações da praxe. Com as mãos enfiadas nos bolsos e as golas levantadas ao vento cortante que zurzia as orelhas e a dignidade, aquela multidão ia engrossando ao mesmo tempo que as distancias das fábricas iam encurtando, depois desfaziam-se cada um seguindo caminho para a fábrica de destino.
Depois o Manuel e os companheiros entravam nas secções barulhentas de máquinas em movimento cadente e monótono num “trum-trum, trum-trum” que ecoava no cérebro desde que se lembrava ainda miúdo quando acompanhava o pai as primeiras vezes para aprender o oficio.
O Manuel não conheceu a internet, só a conheceu de ouvir falar. O Manuel não conheceu os netos exaurido por uma vida sem sentido. O Manuel não amou, casou porque era tradição. O Manuel não deixou herança, tem uma lápide com o nome gravado numa placa de granito polido. O Manuel não tem idade, tem os anos que os filhos de lembram: “uns sessenta e tais”! O Manuel não sabe se foi infeliz, simplesmente porque nunca conheceu a felicidade. O Manuel não viveu, viu viver no caminho que fazia de casa para a fábrica e vice-versa.
O sol sempre nasceu para o Manuel pelas frestas da janela. Ainda lhe incomodam o sono com outros “truns-truns” sempre que vem um outro Manuel para o seu lado e lhe cerram o caixão ali perto.
O Manuel podia ser o José ou o António, mas era o Manuel porque a lápide assim diz.