terça-feira, 31 de março de 2009


O café após o bulício matinal que antecede a hora de entrada do turno normal nas fábricas ficou silencioso, o vento amainara a sua sanha impetuosa pelas frestas do empedrado da pequena casa que constituía o espaço do café e mercearia. Pequenos quadros de clubes e posters de jogadores famosos de outras eras enfeitavam as paredes de granito cru. Mesas compridas ladeadas de bancos corridos de madeira carcomida pelo uso emprestavam-lhe um ar soturno. O Tónio limpava no balcão em gestos maquinais os restos de bagaço entornados por mãos trémulas agastadas pelo vício da ressaca de abstinência depois de uma noite de sono. O pano era mais sujo que o balcão, olhar perdido nos desenhos de abstracção que os longos anos de uso impregnaram na madeira velha o Tónio reflectia nas notícias recentes. Será que o patrão já sabia? Já devia saber e se não souber, o Artur mal chegue dá-lhe a nova. O que fará ele em relação ao assunto? Que merda, será que ia começar tudo outra vez? Há males que vêm por bem, da outra vez entrou algum dinheirito que deu para comprar o café e a mercearia e vida encarreirar. Ainda se lembrava da conversa em surdina do patrão com ele:
- Esse filho da puta anda-me a estragar os negócios – dissera o patrão naquela voz grossa de charuto
- Se quiser trato dele patrão, dou-lhe um enxerto de porrada que não se mexe num mês. O Tónio tinha uma compleição física invejável, mãos grossas de trabalho braçal nos estaleiros da fábrica, nariz levemente inclinado para o lado, partido por tantas rixas de rua o que o fazia fungar constantemente e já se tinha tornado um tique.
- Não, não pode ser isso, tem que ser algo que o cale definitivamente, ou matá-lo ou espetar-lhe um valente susto. Ele tem aquele lacaio dele que lhe trata das contas e sabe de tudo também, se ele se for o Jorge Maria vai perceber que não estamos a brincar e cede a venda dos terrenos, porque saberá que não estamos a brincar.
- Mas matar? Matar mesmo patrão? Pergunta receoso o Tónio.
- Foda-se Tónio, és homem ou uma merda de um rato? Se tens medo diz-me que arranjo outro. Retrucou o Patrão.
- Bem, acho que era capaz disso, era sim senhor. Mas se calhar precisava de ajuda ‘pó caso de algo correr mal.
- E quem é que achas que te podia ajudar? Pergunta o patrão
- O Artur patrão…O Artur era homem para isso. Disse prontamente o Tónio.
- Parece-me ser de confiança, calado e tal mas um tanto fanfarrão. A responsabilidade é tua e ele não pode saber que eu estou nisso. Vê lá como fazes as coisas… avisou o patrão.
- Deixe isso comigo patrão, vai ser limpinho. E a Guarda? Vai começar a fazer perguntas.
- Desses trato eu, não te preocupes. Responde o Patrão em jeito de cortar a conversa e despachar-se para casa que a noite caía… trata disso o mais tardar amanhã, escolhe o melhor sítio, deixo isso por tua conta.

João Oliveira olhou o relógio, e em seguida para a janela, a noite caía, a hora de expediente já finara há uma hora, arrumou os livros meticulosamente, despejou o cinzeiro, deu um último olhar e sorriu para dentro ante a expectativa do jantar que a sua mulher lhe faria. O filho Norberto viria lá jantar a casa, depois do primeiro trimestre em Coimbra. Inchado de orgulho pelo filho cujos estudos lhe custavam os olhos da cara mas valia a pena, seria um doutor, teria um futuro promissor assim deus ajudasse. Ao passar no corredor desejou boas noites em voz alta para a porta entreaberta do escritório do Sr. Jorge Maria Braga, o benévolo patrão que tinha feito esse sonho possível. Ao sair dos escritórios da adega João pareceu-lhe ver uma sombra que se acoitava por trás do velho camião de transporte:
- Quem está aí? Perguntou… Um gato deu uma corrida brusca em direcção ao portão.
- Malditos gatos – disse João numa imprecação surda e retomou o caminhar na noite que já se abatia escura, dobrou a esquina em direcção ao carro enquanto remexia nos bolsos á procura da chave. A pancada veio surda e repentina no alto da testa, sentiu o sangue quente jorrar sobre os olhos embotando-lhe a visão:
- Mas que raio… não acabou a frase, uma segunda pancada atinge-o na base do crânio, outra forte e dura atinge-lhe o estômago dobrando-o sobre si mesmo e tirando-lhe a respiração e a capacidade de emitir qualquer som.
- Foda-se, ainda mexe o filho da puta – ouviu uma voz familiar mas que não conseguia reconhecer.
- Não te preocupes que ele pára já de mexer - disse uma outra voz em surdina.
Sentiu o aço frio da navalha encostar-se ao pescoço, ouviu o sangue golfar espesso, a empapar-lhe o peito, estranhamente não sentiu dores, só uma falta de ar enorme que o levava a inspirar sangue e terror. Já não veria o Norberto… Tinha tantas saudades dele…

segunda-feira, 30 de março de 2009

prostituta de mim


A palavra toma-me por louco
E não sei que mais lhe diga
Obedeço-lhe aos caprichos
A essa louca prostituída

Chupa-me o sangue, rói-me as veias
Morde-me a alma castiga-me o corpo
Canta-me em poesia, deleita-me na prosa
Enrola-me no enlevo do seu doce sopro

Toma-me no corpo, vendaval de paixões
Assassina-me a vontade em seus braços
Roça-me húmida no deambular das emoções
Mil, como mil são seus regaços.

Corre-me nas veias liquefeita
Umas vezes torpe outras sôfrega
Munida de punhal ou de penas travestida
Mas nunca a palavra me saiu trôpega

Retalho XIII, O anjo negro


O padre Agostinho deu em jeito enfadado as despedidas cristãs de fim de missa:
- Abençoe-vos Deus Pai todo-poderoso, Pai, filho e espírito santo, ide em paz e o senhor vos acompanhe acompanhando o que dizia com uma bênção manual rápida a todos os fiéis. Apressadamente como era seu timbre, encaminhou-se para a sacristia com o sacristão atrás, ali chegado despiu os paramentos cerimoniais, arrumou os livros litúrgicos, enquanto o sacristão lhe dobrava os paramentos e os colocava nas grandes gavetas do móvel pesado que revestia todo o comprimento da parede de pedra da sacristia com um crucifixo marcado pelo tempo e abandono por cima. Entregue aos seus pensamentos não ouvia o resmungar surdo do sacristão na pressa de arrumar tudo rapidamente para se dedicar às lides do campo do Abade cujo trabalho de feitor acumulava com este de sacristão. Nesse momento ouviram-se passos rápidos vindos da porta que dava para a saída lateral da sacristia directamente para ao adro da igreja:
- Sôr Abade, Sôr Abade – Chamava a velha Inácia no seu passo apressado.
- O que foi agora mulher de Deus? – Perguntou o Padre visivelmente contrariado pela interrupção dela
- O Sôr Abade nem calcula quem chegou – Disse a beata feliz pela novidade que trazia.
- Ò mulher, se não me disseres não adivinho de certeza, agora vai mas é embora e deixa-me que ‘tou com pressa – resmungou o Padre continuando com os seus afazeres na pressa de fazer a visita diária á sua adega para o “mata-bicho” matinal.
- O Jorge, filho do Sr. Jorge Maria Braga voltou…
O padre parou o que estava a fazer como que se imobilizando, o sacristão estacou também boquiaberto.
- Que estás para aí a dizer mulher? Perguntou o abade como se não tivesse ouvido bem.
- É como lhe digo, ele voltou…- reafirma a beata.
Uma ruga de preocupação atravessa a testa do padre, eis chegado o momento que sempre temeu mas que com o passar dos anos foi esmorecendo e transformando-se em esperança que as coisas morressem por ali. A velha seguiu-se ao marido tomada pelo desgosto, a filha endoideceu e enclausurou-se, o criado, mudo não dizia nada. Tudo indicava com o passar dos anos que ficaria assim mesmo. Mas essa espécie de anjo negro voltou, o que quererá ele? Quais serão as suas intenções? Se calhar só visitar a irmã, depressa voltará de onde veio. Mas, por onde terá andado estes anos todos?
O vento frio e cortante entrou pela porta que a Inácia tinha deixado aberta enregelando todos.

Ainda estremunhado pelo sono Artur montou a sua mota em direcção ao café da aldeia, poiso habitual antes de ir para o trabalho, o vento frio da manhã cortava-lhe as mãos. Ao chegar entrou no café, olhos vítreos e lacrimejantes do frio acercou-se do balcão, olhou em volta, todos calados como habitual, mas era um mutismo esquisito, não era aquele ar ensonado que parecia que se pegava nas paredes sujas do café, não era o silêncio de lamento pela jorna suada que deixava o balcão com aquelas nódoas sujas que se acumulavam umas por cima das outras, não, o silêncio naquele dia era diferente. Artur ajeita com a mão a melena alteada pelo vento e diz ao dono do café que lhe desse o bagaço e o cimbalino da ordem. O homem sem dizer nada tira o café, coloca-o no balcão, enche o cálice de bagaço, dá uma fungadela e diz:
- Sabes quem chegou á vila ontem?
- Ó Tónio, sei lá quem chegou á vila, como caralho queres que saiba se me levantei da cama agora? Responde o Artur.
- Foi o Jorge de Fundo de Vila…
O vento corria inexorável, entrava por todas as frestas das janelas, das portas, esculpia os cantos e arestas da pedra bruta, burilava os cérebros tomados pelo bagaço da manhã num frio que nem o álcool disfarçava.
- Puta de terra maldita, esta – Pensava o Artur.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Retalho XII, a rocha no alto da serra


O velho António era o velho mais velho da velha aldeia, tão velho, que os mais velhos já o conheceram velho. Nunca ninguém lhe ouvira um som, até no caminhar era silencioso, numa destreza que admirava os mais novos. De altura imponente, corpo inquebrantável, cabelo alvo e ralo, tinha no rosto os sulcos da idade, não eram rugas, antes traços de orgulho e firmeza. Corria na aldeia os mais variados boatos sobre a sua proveniência já que o António não tinha família e chegara ninguém sabe quando, era como a rocha no alto da serra, sempre esteve lá… Sentado no alpendre da arrecadação que lhe servia de casa António sentira a chegada da boa nova e o cheiro de tabaco que o envolvia dizia-lhe que a hora tinha chegado. A neblina da noite fazia-lhe companhia nos sussurros que lhe soprava ao ouvido, pela primeira vez em muitos anos António sorriu, coisa que também nunca ninguém viu. Só a aragem de vento norte que agitavam as folhas teimosas e o cheiro, sim, o cheiro que o acompanhava que não lhe pertencia mas que se lhe colava, também conheciam o seu sorriso, quase um esgar. Também lhe conheceram lágrimas na fatídica noite que lentas e silenciosas lhe escavaram ainda mais os sulcos que exibia. O António, mudo, tonto, bruto, forte, perigoso como dele falavam na aldeia, também chorava e todos os dias àquela mesma hora fazia companhia ao cheiro que lhe dava certezas. Vislumbrava ao longe do outro lado do quintal as camélias floridas da japoneira, mais alguém que manifestava a sua presença num inverno de 15 anos. O vento silvante entre as ramagens subiu de tom, o Piloto uivava algures á lua não em lamento mas em celebração, anunciando a chegada da primavera. Em Janeiro a primavera chegara à Casa Grande de Fundo de Vila, senão antecipada pelo menos por uma noite. Os grilos entoaram a sua serenata entre as ervas rasteiras, as cigarras juntaram-se-lhes no acompanhamento, malmequeres floriram nesse exacto momento. António não mostrava surpresa no seu rosto sereno, mostrava apenas contemplação na certeza desse dia. Impávido e sereno bateu nas pernas, num gesto familiar do Piloto que lhe acorreu e imobilizou-se expectante olhando-o de frente, correu a aninhar-se no ninho á ordem do mudo e fiel criado:
- Piloto, para o ninho, amanhã vai ser um longo dia…

quinta-feira, 26 de março de 2009

Barca da fantasia II


Fiz um barquinho de papel
Larguei-o nas águas do rio
Foi descendo suavemente
Deslizando em suave corrupio

Tinha meu barco, mastro magistral
Imaginava-me em cima, olhos no poente
Indicando à mão segura no leme
Destino a seguir na placidez da corrente

Da beleza que lhe sinto nesse deslizar
Na certeza que sinto em mim coerente
Na vida que me traga sem destino ou direcção
Mas sigo da mesma forma imponente

Cada onda que o abana, não o derruba
Trajecto falhado que mais lhe acrescenta
Saber, orgulho de vela erguida
Contra a outra que depressa rebenta

E tão frágil o meu barquinho
Mas teimoso no deslizar
Que nem a represa que aí vem
O vai conseguir naufragar

O canto que me dedicas


Ouço-te o canto sereno na voz plácida
Notas de prazer entoadas ao meu ouvido
Nesse morder de alma que só tu sabes fazer
Num sopro que entoas ao meu sentido
Atento á tua voz cálida e clara
Perpassa-me o possuir da tua alma
Em trejeitos que me envolves
Como névoa, enleado na presença calma
E é tão belo esse cantar que me dedicas
Perene no tempo, imortal no ser
Que em cada nota com que enfeitas
Ouço riachos na montanha a desfalecer.
E se o teu canto me morde o sentir,
A tua voz, a saudade da tua mão
Morde-me a carne, cresce-me a ilusão
Das bocas em reinventada comunhão

quarta-feira, 25 de março de 2009

Eu a filosofar


Ora bem… Tenho andado a pensar, (sou um rapazinho que pensa que se farta) nestas coisas de Deus para a frente, Deus para trás. Se existe um só deus será que é para todas as galáxias? Ou há um por galáxia? Ou até um por planeta? Mas partindo da premissa universal que Deus há só um para gerir estas coisas todas, galáxias distantes, as de perto, a lua, Marte, os anéis de Saturno, a terra, os continentes, os países (já agora dava-me jeito ter um nas traseiras do meu quintal que me tenho dado á preguiça e a relva está a precisar de ser cortada), porra(!), já viram a trabalheira? Por isso esta merda anda num banadalho, são os judeus e os árabes a jogarem badmington com a pomba da paz a servir de pena e o muro judeu de rede, é aquele papa amaricado e nazi e dizer que não…que não se pode foder com preservativo, até aí eu concordo com o gajo, sem preservativo é muito melhor mas o problema é que o gajo a seguir diz que é preciso praticar a abstinência! Mau Maria, isso não, lá porque já ninguém lhe pega lá pelo Vaticano porque está velho não devia ser invejoso e deixar os outros á vontade. Sim, porque todos nós sabemos o regabofe que aquilo deve ser, ainda por cima com aquele corpo sarado que ele devia trazer dos exercícios na juventude hitleriana. Aquilo quando chegou ao Vaticano para assessorar o Concílio Vaticano II, devem-lhe ter caído todos em cima, por isso a adesão de bispos foi desmedida, por isso aquilo começou com o pontificado do João XXIII (sabia-a toda, esse) e só acabou com o Papa Paulo VI. Deve ser daí que vem o termo “papa” do verbo “papar”.
Mas como dizia, (este gajo desconcentra-me sempre) se deus tem um quintal assim tão grande não admira que de vez em quando se distraia aqui com estas bandas e isto vira uma guerra entre árabes e judeus, o jogo em Las Vegas orgias no Vaticano, roubalheira aos parolos em Fátima, excomunhões de crianças e o diabo a quatro. O gajo (deus) vira-se lá para uma galáxia durante sete dias e pronto, isto vai logo pelo cano abaixo. – àh, mas ele está em todo lado, é omnipresente- Direis vós. Está bem, partindo desse princípio também deve estar dentro da cuequinhas da Sharon Stone. E se está dentro das cuequinhas da Sharon tb devia estar dentro das cuequinhas da minha vizinha do quinto esquerdo, e se está lá porque raio ela não fez a depilação e aquilo parecia a selva da amazónia, com lianas e tudo, o que fez de mim um autentico Tarzan de liana em liana? Chocados? Mas não deviam, não fui eu que disse k o gajo é omnipresente…mas se calhar têm razão porque ás vezes ela diz-me:
- Vem depressa “PELO AMOR DE DEUS” que ‘tou cheia de saudades…
E depois há uma altura que começa:
- Ai MEU DEUS, ai MEU DEUS, que é agora, é agora…ai Jesus, mais depressa, ai Jesus…que bom… e fica ali meia morta a dizer que está no CÉU…
Bem, penso eu…se calhar o gajo está mesmo em todo o lado

terça-feira, 24 de março de 2009

Retalho XI, vida ceifada


A irmã esteve quase sempre calada como que adivinhando o turbilhão de pensamentos dele, serviu-lhe uma sopa quente, pão cozido em casa e um queijo que ela mesma fazia acompanhado por um vinho tinto bebido em malga.
- Se não sais de casa, como é que consegues ter estas coisas aqui? Perguntou o Jorge.
- O velho António jardineiro traz-me tudo o que preciso, como sabes sempre nos entendemos bem. Jorge compreendeu então porque pensavam as pessoas que ela não tinha nada em casa. O velho António era mudo e não passava confiança a ninguém. Vivia numa pequena arrecadação no fundo do quintal da casa. O velho era o homem de confiança do seu pai e dedicava-lhe uma devoção e fidelidade quase canina, fidelidade essa que se estendi a todos os elementos da família.
- Pensava que o velho tinha morrido, sempre o conheci velho desde que me lembro, que idade terá? Ele ria-se sempre que eu lhe perguntava isso e nunca me respondeu. Porque não cuidas do jardim?
- Ainda não foste á parte de trás da casa, o quintal sempre foi cultivado. O Jardim deixei-o ficar assim para afugentar curiosos que tentavam espreitar cá para dentro, e como vês a casa por dentro também está limpa a e arrumada. Bem, vou-te preparar o quarto.
Jorge deitou-se na cama feita de lavado, deleitando-se com a suavidade dos lençóis, os cheiros da infância e juventude que o invadiam. Fechou os olhos embalado por essas recordações, olhou a janela, a figueira cujos ramos lhe serviam de escada para fugidas sub-reptícias, iluminada pelo luar e lhe projectava sombras chinesas na parede do quarto, quase sentia o cheiro da salva, do rosmaninho…e do tabaco do pai, esse ali, presente de novo! Tentou conciliar o sono, afugentar as memórias que o assaltavam agora.
Chegara a casa depois da hora de jantar, franqueara o portão e como sempre fazia foi soltar o piloto para fazer as rondas nocturnas á casa. O cão estava agitado, correu para a janela do escritório do pai, Jorge foi-lhe no encalço, o cão especou-se na janela a ladrar furiosamente, mas era alta e Jorge não conseguia espreitar, entrou em casa a correr…ao entrar sentiu uma pancada na cabeça que o derrubou por terra e ficou ali numa semi-inconsciência que não o deixava mexer mas conseguia ouvir… Entreabriu os olhos, viu ao nível do chão uma bota que os trabalhadores da construção civil usam, sentia a pressão forte da outra sobre o seu pescoço impelindo-o contra o chão impedindo-o de se mover. Pela porta do escritório entreaberta, ouvia a voz do pai.
- Não, por favor não, eu limitei-me a fazer o que a minha consciência mandava. Vocês não têm o direito de molestar a minha família. Vocês também são vítimas disso, pensem nas vossas famílias, foi também os vossos direitos que defendi. Subitamente vê o corpo do pai na frincha da porta, projectado violentamente contra a estante dos livros, uma mão segura-o pelos colarinhos, aparece uma segunda mão à altura do abdómen do pai, esta porém com uma navalha longa e fina de dois gumes
- Não! Gritou Jorge mas a pressão da bota nesse instante matou o grito e ficou de olhos arregalados a ver a faca a entrar lentamente, rompendo o colete do fato, atravessando o tecido da camisa, de repente vê-se o sangue espirrar inundando a mão que segurava a navalha. Tomado de instinto felino o agressor retira a navalha de repente e espeta-a de novo desta feita com uma violência inusitada demonstrativa de força e poder. Vê o sangue afluir á boca do pai em golfadas que lhe escorrem do queixo abaixo. A outra mão continuava a segurá-lo pelos colarinhos não o deixando cair, como se o agressor fizesse questão de ver a vida desaparecer dos olhos dele, como se lhe quisesse sentir o cheiro adocicado da morte directamente do hálito… Largou-o e ficou a ver o pai escorregar lentamente pela estante até se imobilizar no chão já sem vida.
Sentiu um pontapé violento na cara, outro nos rins quando se dobrou de dor.
- Também gostava de tratar deste filho da puta. Ouviu numa voz rouca, abafada pelo álcool e por capuz passa-montanhas.
- Não! O patrão disse para não fazermos mal a mais ninguém, vamos mas é embora.
Sentiu outro pontapé violento no rosto que lhe partiu o maxilar. Os dois homens afastaram-se, até á porta de entrada. Tentou olhá-los, estes ainda se viraram para trás.
- Não perdes pela demora meu cabrão. Dissera o algoz que o segurara, olhos castanhos e uma melena que lhe saia da máscara, preta e profusa, fungou em jeito de tique e desapareceram os dois no silêncio da noite…

segunda-feira, 23 de março de 2009

Diário de bordo




Olho o vazio em frente
No paralelismo de trejeitos
Cúbicos, rectos, cilíndricos
Arredondados com preceitos

Do sismo que me toma
Quiçá doente e dolente
Na paralisia que me aconchega
E ao meu olhar demente

Não lhe busco formas nem as quero
Impingem-mas, no resultado do concreto
Na longa parede de plano descendente
Ou ascendente, que não o tenho como certo

Vejo a longa parede onde lhe falta
O tijolo, buraco aberto á demência
Que me tomam, mas que não quero
Ser a pedra dessa intransigência

Louco seria na minha religião
Se me tornassem parte dessa parede
Não busco deus, nem dele preciso
Em fonte da justiça mato minha sede

Não me saciei nunca,
Não sei se alguma vez o farei
Mas bebo dessa esperança,
Mas…louco e cego, serei?

terça-feira, 17 de março de 2009

A barca da fantasia


Em meus olhos horizontes de mar
Cujos limites não encontro
Nas ondas do meu divagar
Busco sinais do meu paradoxo

Rumo ao mar alto da minha fantasia
Na barca de sonhos que me serve de nau
Enfuno as velas, viro popa á paralisia
Proa ao norte, faço-me ao largo

Reviro formas na nau catrineta
Afogo as duvidas, as tristezas
Marinheiro sem jeito para treta
Gume entre os dentes, afago o real

Que aos olhos de outrem
Será loucura, paranóia alucinação (?)
Assomos da onda que vai e que vem
Rusgas do ser que procuro

Nos salpicos que me batem no rosto
Prelúdios de realidade que me assaltam
Sou almirante, comandante no meu posto
A bússola são meus olhos no firmamento

Longínquo mas que sei estar lá
Dou ordens ao homem do leme
Que me fixe e encontre o destino lá
Onde a proa cavalga as ondas

A cada uma que me bate no casco
Temo pela minha fragilidade
Com medo que a ultima seja o carrasco
Da minha nau onde embarco

Vai ao largo a barca da fantasia
Vai ao largo meu ser, amado e odiado
Tantas vezes, no rumo que ninguém desvia
Áh barca minha, barca da minha vida

segunda-feira, 16 de março de 2009

O meu...no teu.


Teu peito no meu,
Meus lábios nos teus
Teu olhar no meu
Meu sentir no teu

O meu no teu
Que é meu, nosso.

No oscilar dos corpos
No resvalar das emoções
Das sombras que projectas
No tesão que é nosso.

Teu corpo em desalinho
Em inverso sentido
Do meu corpo
Que geme, comprometido.

O meu no teu,
Que é meu, nosso.

Da paixão que me cantas
Do suor que te escorro
No húmido do teu
Meu, nosso ventre

O gemido que me sopras
No ardor que te toco
Tua boca traga-me
O prazer que te gemo

Baixo, hum, sim, baixo…

O meu…no teu…
…que é meu… nosso.

Jorge deixou as malas no chão conforme as tinha tirado do táxi, olhou o portão de ferro carcomido pela ferrugem, as silvas abastavam em volta dele, Jorge procurou rodar o puxador, nada… Olhou em volta, viu uma pequena verga de ferro, pegou-a e introduziu-a na argola do puxador, fez força…mais força…toda a sua força… O trinco deu um baque surdo e abriu-se. Empurrou o portão com força, contra as silvas, montes de terra acumuladas pelo vento, ervas daninhas alimentadas pelas intempéries, aquele empurrar, a força que empregou deu-lhe uma imagem do que o esperava. Finalmente conseguiu, o portão entreabriu-se o suficiente para conseguir entrar. Olhou o outrora lindo jardim cheio de ervas daninhas quase do seu tamanho mas descortinava-se um trilho entre o mato espesso, sinal de local de passagem, tomou esse caminho em direcção à entrada do alpendre que dava a volta a toda a casa. De repente ouviu um restolhar de ervas, ramos e folhas a serem calcados rapidamente o barulho aproximava-se a uma velocidade enorme, de repente estaca mesmo aos seus pés num rosnar surdo… depois cala-se… Dá um ganido, e salta-lhe para as pernas num reconhecimento que denunciava toda a saudade acumulada. O velho cão, o Piloto, estava com o pêlo sedoso e penteado, via-se que estava a ser bem tratado ao contrário da casa. Deixou que o cão o lambesse no rosto e nas mãos, voraz na vontade de receber mimos. Ouviu-se uma voz:
- Piloto? Quem está aí? Quem se atreveu a entrar? Como é que deixaste? Raios partam o cão que está velho… Numa imprecação ouviu o caminhar da irmã pela folhagem, num passo arrastado.
- Sou eu minha irmã, o Jorge… Os passos pararam… parou ao mesmo tempo o chilrear dos pássaros que recolhiam ao ninho, o vento agreste que soprava de norte deixou de derrubar as folhas que profusas se acumulavam no chão, os ramos outrora agitados imobilizaram-se numa estranha quietude, o Piloto parou de o lamber e de ganir de saudades imobilizando-se de cauda espetada. Jorge nem queria acreditar no súbito silêncio preso pelas palavras dele, o cheiro no ar que não conseguia reconhecer mas que lhe era estranhamente familiar, sentia o coração acelerar para decibéis que pressentiu perigosos pela pressão que exercia no seu peito.
E como que vindo do nada a irmã apareceu-lhe em frente abraçando-o, dando-lhe o carinho de irmã mais velha que lhe faltou tantos anos, que só as missivas que ia recebendo nos vários destinos que percorreu mitigavam mas via agora nunca ter chegado….estava em casa… agora sim. E os pássaros como que tendo recebido ordem para tal, retomaram o seu canto mais estridentes que nunca, o vento agreste abanou as folhagens que voltearam em seu redor, o piloto recomeçou a ladrar alegremente em sua volta e deixou de sentir o cheiro familiar.
- Jorge… Voltaste, finalmente…
- Joana, ouvi coisas estranhas a teu respeito, que nunca sais, nunca mais saíste desde que me fui, meu Deus…olha para ti…esse cabelo…eras tão linda e deixaste-te ficar assim, que se passa contigo?
- Jorge, os nossos pais continuam a habitar este espaço, não os podia abandonar…
- És doida minha irmã, isso são crendices… ‘tás doida?
- Jorge, ouve-me… O pai continua aqui, não sai daqui enquanto não for feita justiça, eu sinto-o…como sinto a mãe, mas a mãe não vai embora por amor ao pai, só irá quando ele for, sabes como eram chegados os dois, amam-se na morte também. Sinto-lhes a presença. Eles irão e o facto de teres voltado dá-me essa certeza, serás tu a fazer justiça, a justiça que falta ao pai para repousar em paz.
- ‘Tás doida Joana, tu tens noção do que estás aí a dizer, não admira que na aldeia digam que perdeste o juízo. O pai morreu, nada o trará à vida de novo, nada Joana.
Joana virou-lhe costas, encaminhou-se para a entrada principal
- Tu perceberás… vou-te fazer algo para comeres e preparar-te um banho que deves estar cansado.
Jorge ficou a vê-la caminhar, o seu ar continuava altivo, o cabelo ultrapassava-lhe a cintura, em cachos loiros matizados de branco puro como as neves da serra. De repente sentiu de novo o cheiro, um arrepio percorreu-lhe a espinha quase que o imobilizando num misto de admiração e medo… Reconheceu o cheiro, era de tabaco fresco de cachimbo que o pai fumava, não via o fumo mas sentia-lhe o cheiro a chegar a ele em baforadas de tabaco gama, a marca que o pai gostava.

quinta-feira, 12 de março de 2009

O meu primeiro beijo


Escrevi um poema só para mim
Não quero que ninguém o leia
Egoísta nessa contemplação
Guardei-o na mesa-de-cabeceira

De vez em quando, escondido
Olho-o embevecido e penso,
“Que lindo o meu poema”
Nessa beleza fico suspenso

É para a minha amiguinha
Que habita a carteira de traz
Manda-me bilhetinhos de amor
Onde diz que sou o mais lindo rapaz

Promete-me um beijo de amor
De língua como me diz
Fico suspenso na promessa
Do beijo que me fará feliz

Para lhe dar em troca do beijo
Fiz-lhe a mais doce poesia
Guardo-a entretanto na gaveta
Para lhe dar no almejado dia

E são tão lindos os versos
Que dedico aos lábios de alabastro
Da menina que atrás de mim
Me arrebata e me deixa de rastro

Nunca beijei de língua
Tenho dúvida e certeza
Será que serei merecedor
De beijar tal beleza?

Mas quero esse prometido beijo
Como se o primeiro fosse o ultimo
Quero eternizar o momento
Guardá-lo para sempre no meu íntimo

quarta-feira, 11 de março de 2009

Não choro pelo teu fado


Amordaça-te o corpo essa dor
Mas corre-te veloz nos meandros da alma
O grito que exalas nos confins do sentir
Lá onde o verso te sai em serena calma

Morre-te os olhos na neblina
Luz de vela agitada pelo vento
E cantas a morte, arrenego
Da vida que sentes como tormento

Não queres que chorem pelo teu canto
Queres que te bebam sem lamento
Bebo-te em vida o versejar
Ora alegre, ora triste, suave e lento

E pergunto-te eu… Deixas?
Quando rompeste da tua mãe as coxas
Quem te prometeu o arco-íris
Nesta vida matizada de cores negras e roxas?

A vida é a tua guerra, aquela que vencerás
Ainda que na refrega da batalha
Te sintas vencido, mas renascerás
E só vencedor te enrolarás na mortalha

Que com certeza a hora a ti chegará
De a ela te aconchegares na inevitabilidade
Do tempo, que sereno te abraçará
Nesse ir e vir, do ser a sustentabilidade.

E quando chegar já lhe conheces o hálito
Serás velho, cansado e feliz vestes-lhe o hábito.

terça-feira, 10 de março de 2009

Amanhecer


Amor dos dias mornos
Que me amanheces
Em delicada madrugada
Pele com pele, e estremeces
Vejo-te a gota a escorrer
Pelo corpo, em delicado fio
Como lágrima de orvalho
Ou corrente de manso rio
Amanheces em meu redor
Com sabor de amor na boca
Sabe-me a favo de mel
Essa seiva que te escorre, louca
Aqueço-te com a destreza
Do raio de sol que te ilumina
Que atrevido presencia
Minha boca na tua, divina
Ilumina-te os seios que me ofertas
As coxas com que me esfregas
Os flancos em que te cavalgo
Nessas sempre doces refregas
Tua boca sedenta que me traga
Tu amazonas, eu alazão
Corcel de raça, em disparada
Pelo bordo do teu vulcão
Busco a lava do teu ser
Suave mate que me inebria
Amo-te sempre assim mulher
Mais lindo verso da minha poesia

segunda-feira, 9 de março de 2009

Poesia infantil /ás crianças


Cada criança é como um jardim
Com flores de todas cores
Ofertadas, generosas a ti e a mim
São papoilas sorridentes
Cravos rosas e flores de jasmim

Aos saltos bem altos em alegre correria
São a alma do sorriso novo
Que aquece o dia em suave cantoria
Vozes límpidas como ribeiros
Cuja água desce o monte em amena alegria

Inundam e enfeitam o mundo
São o sorriso deste povo
A esperança que os tira do fundo
Em cada criança aos joelhos do pai
Existe o amor e o carinho mais profundo

Dia da Mulher (homenagem ou humilhação?)


Cá temos mais um dia grande
Do nosso calendário gregoriano
O da mulher este, que pela grandeza
Não merecia este dia semi-mariano


Comem-lhe os ossos no colchão
Estatelada por marido bruto
Vive os dias entre panelas
Com medo do estalo abrupto


Apara buço farfalhudo
Á luz do sol do meio-dia
Fá-lo com pinça romba, sem dinheiro
Para estética nem fisioterapia


Não põe silicone nas mamas
Nem alteia o outrora lindo cu
Amamenta a prole benzida
Por padre de preto como belzebu


A hora social condiz com a do peixeiro
Com gaita estridente anuncia peixe fresco
Acorrem todas, vizinhas para comprar
Chicharros e outros do mesmo parentesco


E ficam ali na conversa demorada
Limpam o ranho aos putos com avental
E demoram na treta, tanto que lhes mela
As fanecas embrulhadas em jornal


É ao toque do sino da igreja
Que desperta da conversa
De uma princesa qualquer
Que ficou pobre ou vice-versa


Merecia a glorificação diária
A mulher que trabalha e sua
Que ama sem ser amada
És dona e senhora, até da lua


Mulher que podes ser Maria
Catarina, Rita ou até Ana
Teu nome a mim não importa,
És mãe de toda a raça humana

Retalhos de uma vida (retalho IX, Primavera em pleno inverno)



Num guincho frenético de aço contra aço, deu os últimos estertores na travagem em frente da estação o comboio velho e cansado. Jorge pegou na mala do estribo e assomou á porta, descendo os degraus para a suja gare em betão agora enegrecido pelo tempo com a mescla de pastilhas elásticas esmagadas no cimento. Olhou em volta, o velho relógio de duas faces continuava parado como se o tempo ali tivesse congelado. Os azulejos da estação eram os mesmos com a tinta já puída pelo tempo tal como a representação, que glorificava tempos idos da grande industria têxtil desde a safra do algodão aos lençóis de lavores sem fim, de um povo ali glorificado mas condenado á paralisia como o relógio da fria gare. Ouviu-se o assobio do guarda freios em frente ao comboio com a bandeirola levantada dando sinal de marcha ao vagaroso monstro que num gemido se pôs em movimento arrastado em direcção á próxima estação, virou a gola ao vento agreste e ficou a olhar para ele até desaparecer na linha que o horizonte afunilava. Foi á pequena taberna da estação, olhando os velhos que lhe pareciam os mesmos de quando partiu, cartas penduradas nas mãos amarelecidas pelo tabaco, e um fino traço de tinto nos lábios dando-lhe um ar leporino. Dirigiu-se á taberneira, gorda do outro lado do balcão e pediu para fazer uma chamada para um táxi. Lentamente a mulher pôs o contador do telefone a zero e assentiu com a cabeça.- Sabe um número de um táxi aqui da zona? – Perguntou.- Tem aí um autocolante ao pé do telefone – resmungou a anafada mulher com cheiro a bacalhau frito e buço farfalhudo. Jorge discou o número e pediu um táxi para a voz de bagaço que o atendeu do outro lado da linha. Cinco minutos demoraria a chegar. Jorge desligou o telefone, pediu um café e uma água das pedras.- Água só da torneira, mas o meu poço é empedrado – respondeu a mulher motivando sorrisos trocistas entre os velhos. - Então deixe estar, dê-me só o café – respondeu Jorge.Saiu mesmo a tempo do táxi que apitou do outro lado da linha na estrada paralela á via ferroviária. Entrou no táxi, recostou-se no banco traseiro sob o olhar atento do motorista que o observava com o sobrolho carregado.- É para o Fundo de Vila – Indicou o Jorge observando o táxi “Mercedes” cujo aspecto denunciava os anos a ruminar estrada esburacada, uma imagem da Senhora de Fátima sobre o tablier tão suja como o resto do carro.- Não o conheço de algum lado? – Pergunta o Manuel taxista com ar de desconfiado.- È capaz… – Responde Jorge, começando a reavivar a memória e reconhecendo a voz de bagaço do motorista. – Moro na “casa grande” de Fundo da Vila.- Eu logo vi, você é o filho do Sr. Jorge Maria Braga, acho que o seu pai até lhe pôs a si o mesmo nome, não foi? Retrucou o motorista naquelas certezas absolutas que só o povo tem. Uma tristeza o que se passou com a sua família, o Sr. há quanto tempo já não vem cá? Já ‘pa aí há 10 anos, não?- Quinze – respondeu o Jorge.- Foi logo a seguir àquela morte esquisita do seu pai, bem me lembro. A sua mãe não lhe sobreviveu muito tempo também, coitada. Mas a sua irmã lá está, embora não fale com ninguém e ninguém a veja por trás do matagal que cobre a casa. Diz o povo que ela endoideceu, mas sentem que está viva porque o cão da casa está sempre gordinho. Esquisita aquela sua irmã, desde a sua partida nunca mais pôs o nariz cá fora, as pessoas nem sabem como ela se alimenta, a chaminé nunca mais fumegou, dizem que a casa está assombrada.O Manuel taxista ia dissertando enquanto o carro ia lambendo a borda da estrada de paralelo granítico numa marcha lenta descobrindo aos olhos do Jorge a paisagem de que se tentara esquecer mas não conseguira. A voz do Manuel continuava a ressoar no carro quase no mesmo tom do motor esforçado dos anos.- E a japoneira? Você sabe que aquela linda japoneira nunca mais deu flores desde que você saiu daqui? Áh, ainda me lembro em dias de procissão, as pétalas das flores da japoneira enfeitavam os tapetes de flores de toda a aldeia, o seu pai tinha muito orgulho nas festas da terra embora não fosse crente. Toda a gente estranha que a árvore continue viva mas não dá flores…Você não acha estranho Sr. Jorge?Jorge mal o ouvia absorto nos seus pensamentos.- Hem? Sim, sim claro Sr. Manuel, é Manuel a sua graça não é? - Então lembra-se de mim, também? Pois claro, sou o Manel taxista…O carro entrava agora na rua Fundo de Vila, uma rua sem saída que desembocava na entrada da “casa grande”. Ao chegar o Manuel descreveu um semi-arco virando o carro para a direcção de onde vinha. - Cá estamos Sr. Jorge, são 200 escudos se não se importa.Jorge saiu do carro, chegou-se á porta do Manuel estendendo-lhe as duas notas de 100 escudos enquanto este olhava o retrovisor mirando a casa, num esgar de terror…- É feitiçaria, é feitiçaria, cruzes credo – arrancou no carro derrapando as rodas traseiras, assustado nem engrenava as velocidades, limitando-se a carregar no acelerador querendo afastar-se o mais rápido possível. Jorge ficou a olhar para ele estupefacto com as notas na mão…. Olhou para trás, viu os muros altos encimados por silvas enormes, por trás vislumbrava-se os telhados da casa, e ao lado do portão fronteiriço a japoneira, alta, imponente orgulhosa, toda, mas mesmo toda florida em pleno inverno.
A essa mesma hora os velhos da tasca da estação de comboio olhavam embasbacados para o relógio que tinha recomeçado a trabalhar depois de tantos anos parado...

quinta-feira, 5 de março de 2009

Fecha-se o pano


A promessa velada dos teus olhos
Já não ecoam no meu sentir
Esse sorriso de luz que me ofereces
Já não brilha na alma que fazias abrir

Já não sinto em minhas mãos vazias
O toque suave da tua pele dormente
Teu corpo que assim em mim morria
Vive agora, longe do meu calor dolente

Não ouço os teus murmúrios
De fonte cantante em tarde quente,
Ecoa agora ainda, a tua voz muda
No teu cheiro sempre presente

Procuro-te no espaço outrora preenchido
Nesse devir de alma e bem-querer
Rasgo-me nessa lâmina de dois gumes
Na tentativa vã de te esquecer

terça-feira, 3 de março de 2009

Lábios, flôr do Maio


Chegas-te a mim, teu corpo de corça
Delineado pelas mãos que te percorrem,
Minhas, ávidas e perscrutantes,
Sedentas que ansioso te escorrem

Nos teus lábios flor de Maio
Saboreio a primavera em flor
Arrebato-te, penetras-me a alma
Entrego-me a ti nesse ardor

O beijo surge vindo do nada
Num roçagar de lábios e afectos
Línguas procuram-se em suave alento
Flores desabrocham em caules rectos

Sentes-me a germinar ao teu toque
Sinto teu corpo tomado ao meu, encostado
Tua pele que me inebria por baixo da camisa
Na sala tudo se aquietou, o tempo ficou parado

Só o teu sorriso gorjeia entretanto
Quando sentes que te quero…tanto.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Porque me tratas por amor...


Queria-te fazer o mais lindo poema
Tricotar-te as palavras no mais puro fio
Sentir-te as mãos na suave forma
Do meu bordar desenhado no vazio
Que a tua ausência preenche
Quando a saudade me despe de mim
Num bem-querer que me veste de ti
Nas palavras que me segredas assim
No manso restolhar do linho
De lençóis de puro e doce lavor
Que como os fios do bordado
Se entrelaçam nos corpos em ardor
És a teia do meu mais doce fascínio
Na trama que no meu corpo entrelaças
Abres-te mulher enfim, quando me tratas
Por amor, os desejos que desabafas
Serena e confiante ao meu ouvido
Num sussurro de lamentos e urgência
E eu grito amor, que sim que sou teu
Que sim, és a minha existência